Crítica


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Sinopse

O excêntrico dono de um zoológico privado, com especial paixão por grande felinos, acaba sendo acusado de uma série de crimes, incluindo maus tratos aos animais e tentativa de assassinato de uma defensora dos bichos.

Crítica

Seria muito fácil ridicularizar Joe Exotic, personagem principal desta minissérie documental. Desde que foi descoberto na mídia, e depois no círculo político, o “rei dos tigres”, como se autodenominou, foi parodiado inúmeras vezes pela voz, sotaque, penteado, pelas escolhas de roupa, pelos casos amorosos, pelos videoclipes country, por seus programas caseiros de televisão de Internet. Os diretores Eric Goode e Rebecca Chaiklin teriam farto material para mostrar um sujeito estranho, situando-se à distância e se atendo à constatação de uma diferença (ele em relação a nós, os espectadores “comuns”). Em outras palavras, seria o equivalente de observá-lo no zoológico, propondo que o espectador risse de sua excentricidade. Felizmente, a série da Netflix efetua o caminho inverso. Primeiro, mergulha em profundidade na construção psicológica do personagem para buscar os motivos deste comportamento, tentando compreender o que teria levado ao plano de assassinato contra a sua principal rival no mundo da criação de felinos selvagens, Carole Baskin. Segundo, situa Joe dentro de um contexto muito mais amplo onde as atitudes amorais e/ou criminosas não constituem exceção, muito pelo contrário. Ou seja, ao invés de observá-lo pelo prisma da singularidade, oferece este caso como exemplar dentro de certa classe do empresariado.

Neste sentido, o título brasileiro resulta apropriado ao retirar o foco de Joe para enxergar o panorama mais amplo em que ele se insere. Ao longo de sete episódios e mais de cinco horas de duração, os realizadores entrevistam cerca de vinte pessoas e editam centenas de horas de materiais de arquivo para permitirem que cada elemento saia de uma posição fetichizada para adentrar um contexto e uma reflexão específicos. Joe realmente pagou outro homem para matar Carole? A criadora do Big Cat Rescue teria assassinado o ex-marido, desaparecido poucos dias depois de o testamento ser reescrito em nome dela? O novo sócio de Joe teria bolado um plano perverso para retirá-lo dos negócios? Os dois maridos do “rei dos tigres” seriam de fato heterossexuais, tendo se relacionado com ele apenas pelo acesso a uma vida fácil de drogas? Cada um destes aspectos é debatido pelos dois (ou mais) lados envolvidos. Ao invés de fornecer respostas e declarar culpados, o diretor prefere aprimorar as perguntas, podendo ser respondidas positiva ou negativamente dependendo do ponto de vista – ou de outras provas às quais os diretores não tiveram acesso.

O documentário surpreende pelo amplo acesso ao campo de batalha: todos os personagens envolvidos no imbróglio estão dispostos a falar, apresentar vídeos e fotos a seu favor, e comentar as acusações das partes adversas. O espectador deve concluir a maratona moral, comercial e jurídica proposta pela minissérie sem saber ao certo o que pensar de cada um destes protagonistas, e talvez este seja o principal mérito do projeto. Goode e Chaiklin jamais simulam aos interlocutores um falso apoio, apenas se colocam em posição de interlocutores atentos, como se dissessem: “Falem o que quiserem, e colocaremos no filme. Saiba que também estamos conversando com os outros”. Assim, os depoimentos se esforçam em defender a sua versão. O impacto aumenta consideravelmente por estarmos lidando com personagens que criaram uma versão espetacular e midiática de si mesmos.

Joe Exotic, Carole Baskin, Doc Antle, Jeff Lowe e demais proprietários de felinos passam os dias na Internet, com celulares e câmeras, filmando-se e filmando os concorrentes. Eles gravam em segredo conversas sobre salários, registram escondidos os passeios dos adversários pelas redondezas, filmam as comidas estragadas servidas aos funcionários além dos quartos insalubres onde dormem. A época do narcisismo e das redes sociais produz uma curiosa sensação de onipresença, como se os diretores tivessem acesso a tudo o que aconteceu, apesar de serem incapazes de solucionar os mistérios relacionados ao caso. Nunca produzimos tantas imagens, porém nunca estivemos tão distantes de uma verdade absoluta. Numa cena específica, Joe busca o endereço de sua inimiga para matá-la, e quando consegue o resultado, fica tão feliz que o publica no Facebook. Estamos diante de pessoas doentes, não apenas pela lógica do mercado, mas também pelo funcionamento da sociedade do espetáculo.

Pode-se dizer que A Máfia dos Tigres aborda uma gigantesca guerra comercial. Os felinos imensos, os filhotes fofos levados a orgias e escondidos em malas de viagem se tornam uma embalagem curiosa para a guerra entre grandes empresas, que talvez pudessem cuidar de qualquer outro produto: refrigerantes, roupas, filmes. A série se aventura por um liberalismo desregulado, onde os milhões de dólares envolvidos não são vigiados nem taxados por receio do Estado a respeito de uma intervenção excessiva. Por isso, as pequenas contravenções iniciais de Joe, Carole, Jeff e seus colegas se tornam cada vez maiores, produzindo uma sensação de impunidade tão apropriada à potência política – não por acaso, Joe acredita realmente em suas chances de eleição à presidência da república, apesar de não ter a mínima noção de como se governa um país. Os delírios de grandeza decorrentes do controle absoluto permitem que Joe lance tantas ameaças de morte, durante anos, sem que nada aconteça; permite que Carole coloque em prática muitos atos que critica em seus adversários; que Jeff assuma a vontade de matar Joe em frente à câmera, e que Allen Glover assuma a decisão de matar alguém por dinheiro.

Afinal, trata-se de negócios, e vale tudo quando o inimigo está ameaçando sua margem de lucro. Não por acaso, Joe, Jeff e Doc Antle são ferrenhos opositores aos defensores dos animais e amantes do porte de armas, enquanto interpretam qualquer sanção aos seus crimes como uma violação à liberdade individual, ao direito de expressão e ao direito à propriedade tão intrinsecamente norte-americanos. Através da fábula sombria e grosseira (em todos os sentidos) dos mercenários proprietários de tigres, os diretores relatam uma América profunda tornada caricatura pelo capitalismo literalmente selvagem. Por esta razão, a montagem efetua excelente trabalho rumo à conclusão, quando percebe que nenhuma das prisões ou ameaças jamais ajudou os felinos, que continuam enjaulados, sofrendo maus tratos e servindo de pano de fundo para negócios abusivos. No último episódio, A Máfia dos Tigres se distancia dos personagens humanos para concluir que, nesta guerra, as únicas vítimas são os bichos, negligenciados por aqueles que produziram milhares de horas de filmagens dando mamadeiras na boca de filhotinhos e colocando-os para dormir em suas próprias camas.

Joe termina sua jornada criminosa, como ele mesmo constata, preso numa cela, igual aos bichos. Ele constata, pela primeira vez, que os animais “vivem menos em jaulas porque suas almas morrem”. É ótimo que, apesar de tantos elementos comuns aos tabloides sensacionalistas, o projeto mantenha o foco rumo à conclusão. Outro mérito considerável se encontra na ausência de associações de causa de consequência: Joe é um homem gay, acumulando relacionamentos frustrados com sujeitos que não o amavam de fato, porém a montagem jamais sugere que ele teria desenvolvido transtornos de personalidade por causa disso. Jeff Lowe, John Finlay, Kelci Saffery, Erik Cowie e Tim Stark possuem antecedentes criminais, no entanto o discurso jamais associa o passado de cada um às atividades posteriores do dono do zoológico, a quem se atribui total responsabilidade pelos planos. Respeita-se quando os entrevistados preferem não falar sobre sua sexualidade, sua infância ou seus atos reprováveis. Caberá ao público tirar suas conclusões: estes personagens se revelam mais complexos do que relatórios policiais poderiam indicar.

Talvez o resultado fosse ainda melhor caso os diretores tivessem acesso às imagens do julgamento de Joe Exotic, onde infelizmente não puderam entrar. Depois de acesso praticamente ilimitado às casas dos personagens e aos lados mais sombrios dos zoológicos, o que inclui um suicídio ao vivo, um incêndio criminosos e disparos de espingardas contra tigres, a interdição de participar ao julgamento soa como a primeira restrição danosa ao documentário. Ao menos, Goode e Chaiklin encontram alternativas para driblar esta deficiência na montagem. A Máfia dos Tigres ainda compreende que o modo de vida destes empresários milionários, conservadores e predadores implica numa postura imagética, ou seja, a ideologia se traduz em estética. Os penteados cafonas e descoloridos, os videoclipes com imagens projetadas toscamente em chroma key, as roupas justas com estampas de oncinha, as declarações midiatizadas com flores e canções a capella transparecem um conjunto kitsch muito revelador da maneira como estes personagens enxergam o mundo. Quem diria que Joe, Carole, Jeff, Doc Antle e tantos outros que se odeiam seriam reunidos pela estética autoparódica do luxo.

PS: Curiosamente, desde o lançamento da minissérie na Netflix, biólogos têm publicado artigos científicos para sugerir que os protagonistas sejam vítimas de síndromes e transtornos decorrentes da toxoplasmose, doença transmitida pelos felinos, embora não provoque nestes os mesmos efeitos que produz nos seres humanos. Que estejam corretos ou não, estas iniciativas comprovam a capacidade da minissérie em representar seus personagens com tamanha seriedade que seus comportamentos são dignos de análise pelo prisma das ferramentas científicas. Partindo de um tipo gay, extravagante e delirante, o projeto proporciona reflexões sobre a sociedade contemporânea muitos mais interessantes do que poderiam aparentar a princípio.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
8
Francisco Carbone
7
MÉDIA
7.5