Crítica


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Sinopse

Observa dez millennials que vivem em Nova Iorque. Intimidade, sexualidade, relacionamento, impressões e conexões passam inexoravelmente pelo ambiente virtual.

Crítica

Em Fluidity (2019), a diretora Linda Yellen demonstra grandes ambições. Ela pretende captar a essência da geração millennial nova-iorquina, entre relacionamentos efêmeros, sexo casual e uma permanente sensação de vazio. Para isso, inclui no breve roteiro s a nossa dependência de redes sociais, a cultura das imagens falsas ou exageradas, a ilusão de alegria e sucesso compartilhada na Internet, a multiplicação de orientações sexuais e identidades de gênero, a precariedade econômica aliada tanto à sensação de liberdade quanto à falta de perspectivas para o futuro. Os dez personagens centrais deste filme coral não possuem família, passado nem futuro definido. Eles vivem no presente, com empregos precários (barman, DJ de pequenos shows, vendedora de uma cafeteria) ou moralmente questionáveis (o fotógrafo condenado a retratar uma beleza irreal, a modelo transexual objetificada). Diferentemente do imaginário dos anos 1990 e 2000, ou seja, a cineasta atenua a carga de drogas e rock’n’roll para reforçar a solidão e a frustração sexual. Segundo este filme, pensamos em sexo o tempo inteiro, embora o façamos cada vez menos, obtendo menor satisfação no ato.

Um mérito considerável do drama se encontra na fluidez sugerida pelo título e adequadamente transmitida ao fluxo narrativo. As histórias passam de um personagem ao outro sem sobressaltos nem separação em blocos. A estudante de antropologia social Lilly (Isabella Farrell) está trabalhando como garçonete, quando Matt (Nico Tortorella) entra pela porta. Ele pega seu café, e ao sair, a câmera passa a acompanhá-lo. Os personagens não estão interligados por qualquer golpe do destino, apenas pelo fato de transitarem pela mesma cidade. O filme faz questão de frisar que o grupo não constitui casos excepcionais, e sim exemplares do que a cineasta considera serem os traços marcantes de uma geração. Nenhum personagem é apresentado como heterossexual ou homossexual: vemos o garçom Lee (Miles McMillan) fazendo sexo com um homem, e algumas cenas mais tarde, ele faz sexo com uma mulher. Um belo homem de aparência cisgênero é entrevistado para a pesquisa de Lilly, para descobrirmos muito mais tarde que se tratava de um homem transexual. Os corpos, identidades e paixões se alternam de modo ágil, sem quaisquer tipos de julgamentos morais. Yellen faz rápida menção à existência de predadores sexuais na Internet (numa cena particularmente desajeitada), porém deixa claro que seu interesse não se encontra ali.

Ao contrário de cautionary tales como Homens, Mulheres e Filhos (2014), o discurso a não visa alertar seu público sobre os perigos da dedicação excessiva dos telefones celulares, preferindo se ficar na psicologia dos usuários, sem estabelecer uma relação determinista de causa e consequência. Talvez os personagens não sejam particularmente aprofundados, porém Fluidity possui o mérito de trabalhar dentro de um esquema de produção independente, com atores pouco reconhecidos, sem vaidades em cena, nem compromissos de manter uma imagem pública específica. Ainda que o resultado seja profissional em sua construção de luz, montagem e som, ele carrega o aspecto cru dos filmes B, com atuações pouco polidas, permitindo ruídos e “sujeiras” que o cinema industrial poliria a ponto de perder qualquer espontaneidade. A nudez é filmada de maneira tão frontal quanto naturalista, enquanto os personagens se entregam às cenas de sexo sem pudores – este não é o caso de pessoas que transam de roupa, com pernas e objetos convenientemente escondendo genitálias. Não se nota prazer ou sensacionalismo na exposição dos corpos, sejam eles de pessoas cisgênero ou transgênero, o que representa uma evolução na representação de individualidades múltiplas.

No entanto, o filme sublinha excessivamente o seu tema. Por mais que os silêncios e desconfortos remetam ao tradicional cinema independente, incluindo a união entre “fracassados”, o roteiro exagera na sobreposição de problemas relacionados aos celulares e redes sociais, que ocupam diversas cenas seguidas, sem respiro. Além disso, algumas caracterizações beiram a caricatura: a intelectual consiste na bela jovem de óculos de aro preto e grosso, a secretária do dentista se espreme num pequeno vestido de flores. Existe um caráter expositivo, quase didático, na maneira como o tema perpassa as cenas, ao invés de decorrer naturalmente da trajetória de cada personagem. Determinadas sequências exageram na gravidade, a exemplo da crise existencial do fotógrafo de moda, o flerte do mesmo com o suicídio e a briga entre duas ex-namoradas numa casa noturna. Ao final, um discurso ambicioso em termos sociológicos traduz praticamente tudo o que tínhamos visto até então. Narrações do gênero seriam louváveis caso expandissem o sentido das imagens, no entanto, a conclusão se dirige a um público que se supõe pouco inteligente. Há certa incoerência em supor que o público millennial, a quem a obra se destina, não compreenderia referências tão próximas de suas vidas.

Ao final, Fluidity apresenta um discurso complexo, mas talvez não tão complexo quanto ele acredite. Mesmo assim, ainda é melhor se equivocar pelo excesso de ambição do que pela falta da mesma. Enquanto radiografia de uma geração, Yellen transmite a perda de referências e a busca desesperada por afeto. Há carinho pelos personagens, mesmo quando cometam atos questionáveis. Reflexões potencialmente importantes como “Todas as fotos são precisas, mas nenhuma delas é verdadeira” podem se perder em meio à ciranda jovem, porém introduzem ideias dignas de reflexão ao longo da narrativa. As enunciações de Lilly, extraídas das ciências sociais, soam ao mesmo tempo importantes e pedantes – seria muito mais importante enxergar a modernidade líquida e a contemporaneidade virtual em imagens, ao invés das palavras que buscam traduzi-la. Em paralelo, Yellen adota recursos em desuso, e cujo efeito de novidade se perdeu no cinema indie há tempos: a tela dividida em dois ou três, a colagem de material de arquivo com animações. No entanto, trata-se de uma direção corajosa, sem vontade de agradar a qualquer preço. A cineasta tampouco procura surpreender pelo choque ou pela astúcia da direção com enquadramentos prodigiosos e movimentos de câmera mirabolantes. Felizmente, a mise en scène está a serviço dos personagens.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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