Crítica


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Sinopse

Mehmet é o líder dos coletores de papelão de um bairro de Istambul. Ele vive cercado por crianças órfãs ou abandonadas pelos pais, dentro de cortiços. Um dia, descobre em meio ao lixo um garotinho de 8 anos de idade, Ali, que foge do padrasto abusivo. Mehmet decide protegê-lo, mas este encontro revelará traumas em sua própria infância.

Crítica

O pequeno Ali (Emir Ali Dogrul) sente saudades da mãe. Quando foge de casa para escapar aos maus-tratos do padrasto, ele encontra abrigo junto a Mehmet (Çagatay Ulusoy), um catador de papelão que também possui traumas familiares. O melhor amigo deste é Gonzales (Ersin Arici), homem órfão que tatuou uma mãe imaginária no corpo. Eles vivem sob os cuidados de Tehsin (Turgay Tanülkü), homem revoltado com o descaso em relação a tantas crianças turcas. Ao redor, vivem dezenas de garotos em situação de rua, abandonados pelas famílias. Filhos de Istambul (2021) é um filme estrelado por homens tristes porque cresceram sem o carinho das mães, e hoje sofrem com graves problemas psicológicos decorrentes do trauma. No fundo, a dúzia de personagens constitui uma figura só, um emaranhado de subjetividades afetadas por questões sociais e psíquicas. Neste sentido, a tradução brasileira apresenta um bom título à obra: ao invés do nome original e internacional (Vidas de Papel), a Netflix Brasil opta por enxergar estes protagonistas em sua condição de filhos. Na ausência de mãe, pertencem à cidade, dormindo numa viela batizada, sem qualquer sutileza, de “Beco das Adversidades”.

A principal surpresa diante desta grande produção se encontra no trabalho de direção de fotografia. A miséria em países pobres dificilmente seria associada às cores neon, no entanto Serkan Güler transforma a convivência noturna no interior de cortiços num universo multicolorido que vai do lilás ao azul, passando pelo amarelo forte das lâmpadas noturnas e pelas vielas alaranjadas, tomadas por uma espessa camada de fumaça surgindo sabe-se lá de onde. A oficina de Mehmet, repleta de ratos e pedaços de lixo, é iluminada com esmero por frestas e luzes variadas, enquanto uma sauna reservada ao banho público de cidadãos pobres recebe o tratamento fotográfico de um santuário religioso. A direção de fotografia embeleza estes espaços com tantos recursos (estabilizadores de imagem, refletores, movimentos em todas as direções) que recai em algumas leituras mais prováveis: 1. A ideia de que, apesar da pobreza, o mundo está repleto de beleza por todos os lados, bastando procurá-la, 2. A sugestão de que personagens gentis devem ser filmados com gentileza, ou seja, com cuidado e artificialidades, 3. O desejo de filmar a sujeira sem o teor “desagradável aos olhos”, evitando estética do grito e da revolta.

Todos estes caminhos conduzem ao embelezamento da precariedade, também conhecido em terras brasileiras como “cosmética da fome”. Cidade de Deus (2002) vem à mente diante da produção turca, tanto pela câmera malabarista, correndo por avenidas e ruelas, quanto pela necessidade de embalar os corpos suados e as moradias decadentes numa estética aprazível ao público médio. Esta forma de cinema evoca boas intenções e ternura caridosa, ao mesmo tempo em que sugere o fatalismo: a realidade destas pessoas é trágica, incapaz de mudança. Certamente não é sua culpa, caro espectador, nem da sociedade, da política, do governo, do sistema. Trata-se de propostas artísticas para aliviar a consciência burguesa, ao invés de promover a transformação social – em outras palavras, são obras que lamentam a pobreza, sem cogitar confrontá-la. Filhos de Istambul transmite um olhar piedoso: há crianças abandonadas, pessoas pobres morrendo na fila do transplante de rim, crianças espancadas, dependentes de drogas e chorando a falta da mãe, mães espancadas chorando a falta dos filhos, mendigos brigando entre si por pedaços de papelão encontrado na rua. A vida realmente é uma droga. Mas fazer o quê, né?

Durante dois terços da projeção, o drama se mantém relativamente contido na condução da trama. As cores piscam belamente e os personagens sofrem chagas do espírito e do corpo, no entanto o diretor Can Ulkay permite que a união entre Mehmet, transformado em pai simbólico, e o pequeno Ali, se desenvolva em ritmo agradável, assumindo o caráter de fábula e disparando pérolas de autoajuda aqui e acolá. “Morrer não é o problema. Mas e os sonhos que temos?”, lança um personagem. É uma pena que o ator mirim seja tão mal dirigido: o menino arregala os olhos e sugere felicidade com o exagero típico da atuação publicitária. O rosto levemente sujo pelo setor de maquiagem, as roupas assépticas e o posterior embelezamento do garoto condizem com a estratégia de maquiar a pobreza. Diante do pequeno ator, Çagatay Ulusoy possui uma prestação competente, transitando entre as funções de sofredor, patrão dos demais catadores, e malandro do bairro. (Curiosamente, em decorrência do trauma materno, nenhum destes homens ostenta desejo amoroso ou sexual. Os romances são inexistentes). Ersin Arici também impressiona pela composição tragicômica do capanga limitado intelectualmente, em equilíbrio com o “avô” Tahsin, símbolo de sabedoria. Turgay Tanülkü possui tamanha força em cena, com a fala tranquila e os gestos seguros, que soa desperdiçado pela pequena participação.

O terço final coloca esta trajetória a perder. O melodrama sugerido pela estética contamina o roteiro com tintas gloriosas: há cenas de sofrimento em câmera lenta, mortes ao som de violinos, chuvas redentoras em situação de perigo, desaparecimentos no meio da rua, cenas de luta filmadas com câmera giratória etc. As figuras razoavelmente naturalistas da primeira parte se convertem em vítimas, mártires e heróis. A reviravolta final passa a ser explicada e reexplicada pelos coadjuvantes, para garantir que todos os espectadores tenham compreendido a simples guinada. Ulkay conclui um cinema do paternalismo: ele é gentil com seus personagens, que considera pobres coitados, e terno com os espectadores, que estima pouco perspicazes. A direção se coloca no papel de pai, padre, juiz e professor, reforçando a lição de moral no fim de sua parábola. Embora não evoque diretamente o peso da religiosidade, o drama se assemelha a tantas obras de cunho religioso amplo, servindo a qualquer grande religião (cristianismo, judaísmo, islamismo). O discurso se compadece do mundo de sofredores, sugerindo que as pessoas aguentem estoicamente os golpes do destino incontornável. O desfecho constitui o cúmulo do conformismo em relação a Mehmet e Ali, que se sacrificam para nós, espectadores, em nome de nossa diversão e aprendizado virtuoso. Haja coração para tantas obras clementes, ou em alguns casos, haja estômago.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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