Crítica
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Sinopse
Cansado de ver a indústria lucrar com o entretenimento afro, um romancista utiliza um pseudônimo para publicar uma história que o leva ao núcleo da hipocrisia.
Crítica
Desde que se tornou uma espécie de mantra repetido na nossa contemporaneidade, o tópico “diversidade” também virou uma comodity valiosa. Os mecanismos capitalistas compreenderam a demanda crescente e fomentam a oferta para satisfazê-la, assim produzindo fenômenos de massa que muitas vezes perdem em contestação por conta da intenção mercadológica. Mas, numa realidade como a nossa, é possível atingir qualquer alcance maior se ignorarmos as lógicas de mercado? Ou, por menor que seja a ressonância esperada, sempre estaremos submetidos às engrenagens do capitalismo, cuja tendência é embalar os discursos para consumo? A questão é complexa e está inserida na premissa de Ficção Americana, longa-metragem indicado ao Oscar de Melhor Filme em 2024. O protagonista é Monk (Jeffrey Wright), professor de saco cheio dos questionamentos rasos dos alunos, autor frustrado que não publica um livro sequer há anos. A primeira cena lança uma provocação muito interessante. Ao colocar a palavra nigger no quadro, termo pejorativo para se referir a afro-americanos, Monk se torna alvo dos protestos da aluna branca indignada. Ele, homem negro, pondera sobre o contexto no qual o verbete está inserido, mas consegue apenas inflar ainda mais a raiva da estudante que sai batendo a porta. Será mesmo que ela está furiosa por conta da discussão em torno da palavra ou assumindo um papel social?
Será que a menina não está apenas se encaixando num lugar de branquitude culpada para com isso parecer antirracista, o que é percebido como algo nobre? Portanto, a aluna está realmente querendo discutir a segregação racial nos Estados Unidos ou somente construindo uma superficial imagem progressista que deseja vender ao outro? Afinal de contas, ela desautoriza uma pessoa negra ao demonstrar toda a sua indignação. O teor provocativo do filme dirigido por Cord Jefferson ganha matizes quando o protagonista, cansado do funcionamento desse mundo de aparências que finge ser responsável, resolve criar um pseudônimo e escrever um livro recheado de estereótipos raciais. Mais do que esperada, a ironia é que o mercado (liderado por brancos) ama o que seria a piada irônica, criando para Monk uma situação no mínimo inusitada. Mas, Ficção Americana tem premissas bem mais interessantes do que as suas elaborações, uma vez que o roteiro assinado pelo próprio cineasta, com base no livro Erasure, de Percival Everett, entremeia as discussões interessantíssimas com a observação de Monk num retorno forçado para reencontrar a família da qual se desgarrou. De volta por conta da doença degenerativa que acomete a mãe, ele rapidamente terá também de lidar com o luto e novas responsabilidades. Justamente a construção desse cenário adjacente enfraquece o filme, pois fragmenta atenções.
Por um lado, temos Monk, do alto de sua arrogância e dificuldade de convivência, lidando com as consequências da brincadeira que acaba indo longe demais. Por outro lado, a necessidade de assumir os cuidados da mãe cada vez mais doente, lidar com segredos familiares vindo à tona e viver o novo relacionamento construído com a vizinha que está se separando do marido. O roteiro simplifica a questão moral proposta ao personagem quando o livro-piada se torna um queridinho da indústria, pois paralelamente impõe a Monk a conveniente urgência financeira. Portanto, ele não tem escolha, não pode ouvir seus escrúpulos (ou fazer ouvido de mercador a eles) quando seu pseudônimo se torna fenômeno editorial. Uma vez destituído da capacidade de escolha, pois a saúde de sua mãe requer cuidados que o poder financeiro da família não comporta, ele é obrigado a se adaptar à realidade. Quem poderia julgá-lo? Nesse cenário, se perdem possibilidades, como a investigação do ego do personagem, sua ambiguidade moral e até mesmo as nuances da discussão que o longa propõe por meio do ponto de partida ácido. Sim, pois a trama equilibra a ironia elegante com a leitura do panorama humano aproximado das histórias que rumam ao moralismo em seus clímaces. Sim, pois Monk precisa aprender lições, como romancista integrado ao mercado e enquanto filho/namorado/irmão nesse seio familiar.
Como vemos no desfecho com tendências metalinguísticas – que não vamos aprofundar aqui para evitar a antecipação de surpresas importantes à experiência –, Ficção Americana poderia se embrenhar mais entre as camadas da representação, questionando realidade, imaginação e invenção, uma vez que estamos falando de um filme exatamente sobre o ato de criar. A conversa de Monk com a escritora Sintara (Issa Rae) abre uma janela para o filme fustigar a questão do lugar de fala, bem como as das representações repletas de estereótipos raciais que atende confortavelmente às demandas mercadológicas. Mas, se não agradarem em alguma medida o mercado, como novos autores se afirmarão e, de fato, conseguirão proeminência? Assim como essa, várias outras indagações complexas estão implícitas ao longo do filme, mas nenhuma delas é destrinchada. Com uma ótima atuação de Jeffrey Wright como o personagem principal que se encaixa bem na galeria de figuras pedantes e neuróticas do cinema recente, a produção é propositiva, mas não investigativa; se interessa pela discussão da representação racial, mas não parece disposta a gastar mais do que interrogações com ela; analisa Monk como um homem ora correto, ora absolutamente equivocado, mas não mergulha nessa sua ambivalência. É um filme bonitinho sobre assuntos espinhosos, uma comédia inquisidora, mas contemporizadora demais.
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