Crítica
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Sinopse
Angustiado diante da possibilidade da falência da empresa automobilística que fundou, Enzo Ferrari tem ainda de enfrentar a instabilidade de seu casamento, a pressão da amante para assumir publicamente seu filho e o fato de seus carros não serem os mais rápidos da pista.
Crítica
Tendo em mãos um material que facilmente poderia render outra cinebiografia chapa-branca, daquelas que canonizam o protagonista mesmo quando fingem criticar os seus aspectos menos positivos, o cineasta Michael Mann demonstra pouca preocupação em conduzir Enzo Ferrari (Adam Driver) ao posto de gênio torturado. Aliás, o experiente realizador opta por traçar um circuito aparentemente retilíneo para falar do homem notável, no qual competem seus amores e suas obsessões. E, subliminarmente, o experiente realizador desenha pistas mais oblíquas para falar sobre a morte, a passageira indesejável que os pilotos aceitam no desfrute de suas paixões. Não à toa, uma das primeiras coisas que Enzo faz em Ferrari é visitar o túmulo do filho precocemente morto por conta de problemas renais. O líder de uma das marcas automobilísticas mais importantes do mundo está sentado diante da lápide, visivelmente emocionado. Mann insere no quadro o jazigo ao lado, curiosamente estampado com o mesmo nome do garoto. Trata-se do irmão de Enzo, Alfredo, morto na Primeira Guerra Mundial, a quem ele homenageou com o batismo do filho. Parece um plano relativamente simples, mas contém todo um universo contextual de sofrimento, vide a sobreposição do luto (mortes do irmão e do filho). Mais tarde, quando a mãe do protagonista, Adalgisa (Daniela Piperno), diz friamente ter preferido que Enzo morresse no lugar de Alfredo, isso alimenta a tensão mediadora dessa ambígua relação familiar.
Ferrari tem como protagonista um sujeito pragmático, alguém que confessa lá pelas tantas ter construído um muro em torno de si próprio a fim de se proteger contra os novos estilhaços de possíveis perdas. Hermeticamente fechado para não ser afetado pela ausência de entes queridos, ele acaba blindado também das boas sensações, o que o transforma num autômato. Trata-se de uma contradição, pois esse homem que aceita o risco para triunfar nas pistas não está disposto a colocar em xeque o seu equilíbrio, mesmo que isso signifique uma vida afetivamente morna e previsível. Porém, a letargia some quando o assunto é a corrida, a velocidade, a manufatura que transforma ligas metálicas em motores de bólidos capazes de bater recordes. Já sua esposa, Laura (Penélope Cruz), é quase uma morta-viva que aproveita qualquer oportunidade para ferir emocionalmente quem estiver ao redor. Ela é desprovida de algo que a entusiasme. A ideia melodramática da mãe que morre um pouco junto com o filho é muito bem situada dentro dessa narrativa em que os personagens principais são definidos por perdas e/ou impossibilidades. A amante de Enzo, Lina (Shailene Woodley), por exemplo, é geralmente feliz com a vida ao lado do filho bastardo do poderoso presidente da Ferrari, mas perde a paz quando confrontada pelo garoto sobre o sobrenome a ser utilizado publicamente. Lina nem é tão afetada pela inviabilidade de ter Enzo, mas por aquilo que seu filho pode perder.
É curioso que em Ferrari a existência desses homens desafiadores seja várias vezes filtrada pelo olhar feminino. Numa cena de teste, a morte brutal do piloto arremessado para fora do automóvel é apresentada ao espectador por meio do semblante petrificado da namorada que testemunha a tragédia. Quando encarado pela apaixonada Lina, Enzo é um homem de família, compreensivo e tão atencioso quanto a rotina como empresário de vida dupla pode permitir. Já quando está na companhia de Laura, o protagonista parece acrescentar algumas camadas de tijolos e argamassa no muro erguido para se proteger dos sentimentos. Mais tarde, o piloto-galã Alfonso de Portago (interpretado muito bem pelo brasileiro Gabriel Leone) é diversas vezes eclipsado pela presença da namorada famosa, a atriz Linda Christian (Sarah Gadon). Essas mulheres colocadas à margem da pista são fundamentais à trama, não somente pelo modo como iluminam melhor as conjunturas dos respectivos cônjuges, mas também pela maneira como exercem individualidade em ambientes dominados por homens. A mãe do filho bastardo lutando quase silenciosamente pelo reconhecimento do menino; a esposa lidando de modo agressivo e vulcânico com um sofrimento persistente; a matriarca destituída de poder ainda exercendo uma influência considerável; a estrela de cinema roubando os holofotes desses homens egóicos. Nesse sentido, Penélope Cruz sobressai com a sua composição da esposa que parece condenada.
Quebrando as expectativas de ter feito um filme sobre automobilismo com ampla prioridade à adrenalina –a julgar pelo vigor constante em seus outros trabalhos –, o cineasta Michael Mann faz de Ferrari um melodrama lúgubre sobre as negociações com a morte. Apresentando outro desempenho notável, Adam Driver faz de Enzo Ferrari um personagem fascinante que não barganha conosco em busca de simpatia. Ele é regido pelo amor incondicional à velocidade, a única coisa que o faz acordar todos os dias e suportar o fardo das perdas que definem a sua postura endurecida. E ele funciona como uma espécie de mentor ao transmitir a chama dessa devoção que pede a mais cristalina compreensão dos riscos envolvidos. Enzo solicita aos seus pilotos que não deixem os perigos condicionarem as decisões na pista, chegando a defender a imprudência como uma atitude que leva à grandiosidade. Mann utiliza as cenas de corrida para ilustrar as batalhas internas dos personagens, transferindo aos circuitos a constante alternância entre vencedores e perdedores, algo observado nas conexões humanas de Enzo. Então, na superfície, Mann cria um dramalhão com tintas tipicamente italianas para tratar de coisas como paixão, frustração, expectativas e ressentimentos. Porém, o realizador reelabora tudo isso subterraneamente a partir da relação com a inevitabilidade da morte, logo criando camadas. Um dos pontos negativos é o inglês macarrônico de sotaque pseudo-italiano. De resto, ótimo filme.
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