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Sinopse

Cidade de Nova Iorque durante a madrugada. Um adolescente em dificuldade financeira e um homem surdo-cego se encontram. Esse episódio vai mudar a vida de ambos.

Crítica

A descrição de Tereek (Steven Prescod) não é nada elogiosa. Há inúmeras maneiras de apresentar um rapaz em dificuldade financeira, passando a noite com os amigos sem saber onde dormir. Ora, o diretor Doug Roland investe em estereótipos nocivos da representação de negros no cinema: este é um jovem com o gorro da jaqueta cobrindo a cabeça, malandro, folgado, do tipo que come de modo grosseiro, rouba e arranja brigas pelas ruas de Nova Iorque. O ator é levado a carregar no molejo do corpo, no sotaque periférico, nos gestos agressivos. Para o cineasta, o caminho deste rapaz “perdido” parte das trevas à luz. Ao longo do encontro de alguns minutos com um deficiente físico, ele encontrará a bondade dentro de si, e decidirá enfim ajudar aos outros. Feeling Through (2020) corresponde à antiquada política de conciliação pelo afeto que ainda encontra alguma brecha no Oscar (vide Green Book: O Guia, 2018, e Histórias Cruzadas, 2011). O diretor acredita na necessidade de superar tanto o preconceito contra pessoas surdo-cegas quanto o racismo. Para isso, aparentemente, basta abrir seu coração. Como não tínhamos pensado nisso antes?

O discurso produz um olhar piedoso: Artie (Robert Tarango, ator surdo-cego) se torna um pobre coitado, muito gentil, e consequentemente puro e ingênuo (ele literalmente acredita em qualquer um que lhe conduza cidade adentro). O cineasta observa o personagem com estranhamento: então é assim que ele se comunica, com um bloquinho de papel nas mãos? Então ele tem uma vida amorosa como qualquer um? Somos colocados no ponto de vista de Tereek, ignorante quanto às dificuldades alheias – em outras palavras, o autor pressupõe um público ignorante, carente de explicações fatuais e morais. Já o rapaz negro precisa crescer enquanto ser humano. Há outros sujeitos tristes e melancólicos na trama, a exemplo do homem idoso em situação de rua, que acredita ser uma boa ideia pedir esmola ao personagem surdo-cego parado na calçada. Apenas homens tristes e abandonados caminham pelas ruas de madrugada, segundo o filme. Embora oculte qualquer menção religiosa, o curta-metragem fornece uma parábola cristã de amor ao próximo e superação de obstáculos por meio do amor. Ao final, o diretor parece nos perguntar: “E você, já fez sua boa ação hoje?”.

Em comum com as produções religiosas, Feeling Through constrói com o espectador uma relação paternalista, beirando o desprezo pela capacidade de compreensão do público. O diretor acredita que esta história seja difícil demais ao interlocutor, introduzindo ornamentos para nos dizer quando chorar e quando perceber a redenção pela amizade. Por isso, quando Tereek aceita dar o braço ao desconhecido e ajudá-lo até o ponto de ônibus, a trilha sonora nos avisa que este é um momento especial. A cada abertura do jovem à generosidade, a música volta a nos lembrar de que algo importante ocorre ali. Estes efeitos são manipuladores emocionalmente, além de óbvios em termos de linguagem cinematográfica. O amargor deste painel (o motorista ranzinza, os amigos pouco prestativos, o atendente apático da loja) decorre de retrato pessimista das grandes cidades, repletas de pessoas que precisariam das as mãos (literalmente) e ajudar umas às outras. Não se trata de uma metáfora particularmente sutil, nem uma lição adaptada à situação específica de Nova Iorque. Pelo contrário, o discurso faz o possível para torná-la universal, passível de acontecer em qualquer parte do mundo. Por isso mesmo, a ilustração simplória da juventude negra beira o racismo, ao passo que o olhar condescendente com Artie esclarece pouco a respeito deste homem para além da cegueira e da surdez.

Deste modo, nenhum dos dois possui qualquer forma de complexidade psicológica, nem menções à rotina fora deste encontro casual. Eles se resumem às suas funções sociais: o jovem negro e periférico, e o homem com deficiência. A percepção de equivalência nestas formas de exclusão, levando a uma identificação e aproximação naturais, carrega notáveis problemas políticos e sociológicos, longamente debatidos durante o lançamento de Intocáveis, 2011, que adota princípio semelhante. Não é possível colocar todas as minorias num caldeirão e pedir que cuidem umas das outras. Isso equivale a atribuir a culpa da marginalidade aos próprios marginais, sem resolver o problema deles (Tereek ainda busca um lugar para dormir naquela noite). Sobretudo, esta forma de pensamento isenta as estruturas sociais e governamentais de responsabilidade pela miséria, favorecendo a interpretação meritocrática de que qualquer pessoa pode dar a volta por cima com afeto e boa vontade (o homem deficiente até tem namorada, está vendo?). Devido aos problemas sociais, políticos e cinematográficos, esta obra se transforma num produto reacionário, incapaz de elaborar um panorama minimamente complexo do mundo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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