Sinopse
Situado em uma mina de superfície, dois meninos se afundam em um jogo de poder aparentemente inocente com a Mãe Natureza como o único observador.
Crítica
Em Fauve, indicado ao Oscar de Melhor Curta-metragem, os pequenos Tyler (Félix Grenier) e Benjamin (Alexandre Perreault) transitam por ruínas medindo suas perspicácias em jogos, com direito a pontuação que visa confirmar qual deles é o mais esperto e sagaz. Do interior do trem esquecido, onde Tyler confinou Benjamin para ganhar vantagem na disputa, ao exterior do veículo sobre trilhos depauperado pelo tempo, o percurso é alimentado por forças paradoxais. De um lado, a amizade evidente que propicia essa interação fraternal. De outro, certa agressividade que permeia as atividades, vide palavrões e movimentos bruscos, ambos comumente associados à infância masculina, ditando as regras de uma conjuntura que sublinha essa tensão de poderes. Eles chegam a brincar de “quem rir primeiro, morre”, claro exemplo da tal fricção.
Uma das boas sacadas de Fauve é a forma simples, porém bastante eficiente, com que se desenvolve a construção da dúvida enquanto elemento preponderante. Quando Benjamin diz ao colega que viu uma raposa, isso sem que a câmera confirme ou desminta o menino, fica claro que a dinâmica de pequenos truques de enganação sustenta a prevalência do misterioso. Aliás, a direção de fotografia assinala essa tendência ao enigmático, capturando a ação por ângulos enviesados, a partir de perspectivas não necessariamente frontais e claras, especialmente em instantes-chave. O cenário muda. Eles chegam a uma mina a céu aberto, espaço que poderia muito bem servir à ficção científica. Nesse momento, o filme de Jeremy Comte entrega sua referência a Stalker (1979), obra-prima de Andrei Tarkovski que se passa numa zona indeterminada e interditada.
Fauve muda de tom, privilegiando a urgência, assim que Benjamin fica irremediavelmente preso numa espécie de areia movediça acinzentada. O realizador mantém no ar a pequena possibilidade de tudo aquilo se tratar de uma boba pegadinha com o intuito de passar o amigo para trás, porém o que parece chacota de mau gosto ganha gradativamente contornos de possível tragédia. As perambulações de Tyler por esse mundaréu plúmbeo de minério exposto, com abundância de fusões e outros truques de montagem, reforçam o diálogo com Stalker, ainda mais evidente por conta da cabeça raspada da criança, semelhante à do protagonista do longa-metragem de Andrei Tarkovski. A esfinge do desconhecido se impõe como um prenúncio de morte, algo que já se anunciava nos objetos carcomidos pela obsolescência que apenas circundava os protagonistas.
O encontro ocasional com a mulher na estrada, personagem interpretada por Louise Bombardier, é como um retorno forçoso à estrita realidade, então demarcada pela dor de um acontecimento fatídico e impressionante. O surgimento de um elemento surpresa no meio do percurso, num só tempo, confirma a aspereza das verdades e permite que o semblante choroso seja um sintoma do transbordar da emoção. Fauve aproveita exemplarmente os espaços pelos quais transita, extraindo dessa relação poética com lugares e suas adjacências uma considerável profundidade simbólica. O grande destaque do curta-metragem é a perspicácia do cineasta Jeremy Comte para instaurar a dubiedade que perpassa o todo em diversas camadas e a interpretação de Félix Grenier, que vai da hostilidade expurgada nas brincadeiras à demonstração de pesar diante de uma perda.
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