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Sinopse

Tonya Harding dominava a arte da patinação no gelo. Entretanto, acabou figurando com maior destaque nas manchetes por algo totalmente diferente. De forma absurda, trágica e hilária, esta mulher se tornou o centro do maior escândalo na história do esporte nos Estados Unidos.

Crítica

Talvez a plateia mais jovem não saiba quem foi Tonya Harding. A ex-patinadora artística foi a primeira norte-americana, e segunda no mundo todo, a realizar o salto triplo axel. Porém, mesmo com um talento que lhe rendeu duas idas aos Jogos Olímpicos, além de ter sido campeã do Campeonato Nacional e vencedora da medalha de prata no Mundial de 1991, a esportista sempre se considerou um peixe fora d´água. Rejeitada muitas vezes pelo seu comportamento fora dos padrões da categoria em que estava inserida, Tonya acabou se tornando internacionalmente reconhecida pelo escândalo de 1994 que pôs fim à sua carreira: a suspeita de ter mandado quebrar a perna da sua principal competidora, Nancy Kerrigan. É este caso que aborda Eu, Tonya, uma cinebiografia que aposta no humor ácido para discutir não apenas as diferentes visões sobre o ocorrido, como também os abusos físicos e emocionais que podem abalar as mulheres.

O letreiro inicial informa: o longa foi realizado “com base em entrevistas sem ironia, descontroladamente contraditórias, totalmente verdadeiras". O filme dirigido por Craig Gillespie, cineasta conhecido por A Garota Ideal (2007) e pelo remake A Hora do Espanto (2011), já mostra de cara que o sarcasmo e a ironia vão dominar a história, ainda mais pelo formato mockumentary, com depoimentos, principalmente, de Tonya (Margot Robbie), sua mãe, LaVona Golden (Allison Janney), e seu ex-marido, Jeff Gillooly (Sebastian Stan). A escolha para a importância do que falam estas duas figuras, além da protagonista, se deve ao peso emocional que elas implicam na formação da personalidade da patinadora. A progenitora, realmente, não pode ser chamada de mais do que isso, já que a relação com a filha nunca foi de carinho. Já o ex é o legítimo babaca machista que se acha dono da mulher durante uma relação.

Logo nos primeiros minutos somos apresentados à vida precária da protagonista ainda criança (interpretada por McKenna Grace nesta fase), sob os cuidados ferrenhos da mãe, que a faz treinar dia e noite para se tornar uma profissional de sucesso. Mesmo com os protestos da possível treinadora, que considerava a menina nova demais, a mesma acaba aceitando a garota no time, o que se prova uma boa escolha. Só que a situação financeira da família não é nem um pouco glamourosa, o que respinga não apenas nos trajes simples de Tonya, como também em seu comportamento, mais grosseiro e sem muita educação. Quando mais velha, estes problemas se tornam mais acentuados, fazendo com que a Associação Americana de Patinação Artística torça o nariz para a profissional, por melhor que ela seja na pista.

O roteiro de Steven Rogers (que até então tinha como maior atrativo no currículo a série Friday Night Lights, 2006-2011) não tem medo de brincar com coisa séria. Na verdade, o humor de Eu, Tonya dificilmente é gratuito – tirando uma cena ou outra, especialmente as que provocam uma quebra da quarta parede – pois acabamos entrando de cabeça não apenas na história, mas também naquele mundo obscuro que mal conhecemos. É o olhar voltado para a América que poucos querem ver: sem glamour, luxo zero, com a pobreza em alta e o lixo nas ruas à vista de qualquer um. É neste ambiente que Tonya cresceu levando tapas da mãe (até uma facada no braço), abandonada pelo pai (o único que parecia realmente se importar com a menina até então), envolvida com um namorado sem perspectivas de vida e que só sabia lhe colocar pra baixo (com mais tapas e socos). O tom sarcástico não reduz essa violência a qual a personagem foi acostumada desde pequena, mas, sim, realça a maneira pela qual ela e todos lidam com estas dificuldades dentro de um contexto que parece absurdo para muitos. Porém, para Tonya e seus próximos, é mais do que normal. É cotidiano. O que não diminui sua gravidade.

É justamente dentro deste tom que as atuações se tornam ainda mais convincentes. Mesmo com tantos percalços em sua trajetória, Tonya poderia ser retratada apenas como uma pobre coitada. Na pele de Margot Robbie, a sofredora se torna uma batalhadora, ainda que carregue seus traumas no rosto enraivecido e nas olheiras que demonstram o cansaço de cada dia ser uma luta diferente. Seus passos na patinação, ainda que com a ajuda de efeitos visuais, ganham mais brilho graças à direção de Gillespie, que prioriza o plano sobre sua estrela, da cabeça aos pés, acompanhando a evolução e consequente queda. É o conjunto de expressões que tornam Allison Janney também num verdadeiro monstro em cena. Literalmente devido à perversidade de sua matriarca amoral, mas também de forma subconsciente quando notamos um olhar triste por trás daquela face dura de pedra, aparentemente sem sentimento. São mãe e filha a força matriz do filme, ainda que Sebastian Stan não faça feio como o caipira que age sem pensar. A cara de bobo habitual do ator (muito bem escondida pela barba e a máscara do seu Soldado Invernal do Universo Marvel) acaba caindo com perfeição num personagem tão ingênuo quanto violento.

Mas e quanto ao joelho de Nancy Kerrigan? Bom, eis a grande jogada dos realizadores: o tema se torna apenas um McGuffin para compreendermos a trajetória errática de Tonya, da infância perturbadora ao péssimo dedo podre para relacionamentos. É claro que, quando a questão surge, não é rebaixada em importância. Pelo contrário. Mais do que a narrativa indicava até então, é aqui que as contradições dos depoimentos fazem com que a produção não responda à pergunta principal: afinal, Tonya participou do crime ou não? E nem é a intenção dos envolvidos colocarem um ponto final. Todos os elementos apresentados anteriormente ao “atentado” permitem que o espectador pense o que quiser sobre o assunto, assim como ocorreu do lado de cá da tela.

Este é um filme que não se preocupa com sutilezas. É o legítimo “cheguei, cheguei bagunçando a zorra toda”. Não há espaço para sentimentalismos. A ideia é chocar, mas não de maneira tão simples. O humor corrosivo e violento que lida com abuso e assédio (numa época em que o tema é bastante discutido também fora das telas) pode até ser ofensivo para muitos. A falta de empatia e as agressões quando criança acabam revertendo para uma mulher adulta que só queria ser amada – mesmo que entendesse o amor como um relacionamento baseado em beijos e tapas. Principalmente estes últimos. É bem possível que várias pessoas (especialmente mulheres) se identifiquem com Tonya. Mas, que fique claro, isto não é uma redenção de sua persona. Afinal, como a própria diz “os EUA precisam de alguém para amar e também para odiar”. Nem preciso dizer qual papel a ex-patinadora acabou tomando para si. Eu, Tonya provoca um riso nervoso, além de causar raiva, indignação, desprezo, empatia e tristeza. Tudo na mesma medida. Não pela produção em si, mas pelas situações que qualquer um pode sofrer na vida. No fim das contas, acaba sendo tão humano quanto sua protagonista.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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