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Sinopse

Ao voltar de férias, Paul e a família acabam se deparando com sua casa ocupada por posseiros dispostos a tudo.

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O questionamento do conceito tradicional de masculinidade está no centro de Estranhos em Casa, do francês Olivier Abbou. Temática que vem apoiada em outras, de ordem social e racial, igualmente significativas. Todas elas recaem sobre a figura de Paul (Adama Niane, de Perdrix, 2019) – homem negro, professor de história, casado com uma mulher branca, Chloé (Stéphane Caillard, de Atentado em Paris, 2016) e pai do jovem Louis – e são impulsionadas por um evento insólito: ao voltarem de uma viagem de férias, Paul e família encontram sua bela casa trancada e ocupada pelo casal – a babá de Louis e seu marido – a quem a haviam emprestado durante sua ausência. Munidos de um contrato dúbio e informal, os dois agora clamam ser inquilinos registrados do imóvel, o que gera um imbróglio judicial mais complexo e longo do que o esperado, levando a família de Paul a se mudar temporariamente com seu trailer para um camping decadente gerenciado por Mickey (Paul Hamy), conhecido de Chloé dos tempos de colégio.

A partir desta situação aparentemente absurda, mas inspirada em fatos, como afirmam os textos iniciais, Abbou dá início a construção da escalada de tensão e desconforto – esta última sensação reforçada pelo desarranjo proposital da trilha sonora, variando entre os sintetizadores atmosféricos e a dinâmica de improviso do jazz – que acaba envolvendo seus personagens por completo. Contudo, mais do que no conflito direto com os “invasores”, que ao final ganham um tempo restrito de tela e desenvolvimento individual mínimo, essa escalada tem como base os conflitos particulares de Paul relacionados à sua posição como homem na sociedade e à visão que boa parcela da mesma ainda tem sobre o assunto. Tranquilo e de aparência frágil, o personagem vê sua virilidade constantemente contestada e desafiada por aqueles que o cercam, algo que ganha um peso extra devido aos casos extraconjugais de Chloé e à sua opção pela manutenção do relacionamento.

Sob a influência de Mickey, representação do modelo de masculinidade dominante construído através dos séculos, e em processo de ressignificação ainda gradual, Paul é rebaixado à posição de homem incapaz de cuidar do que é seu, de sua propriedade – o que, na mentalidade arcaica de Mickey, que tem a mulher como objeto de posse, inclui Chloé. Assim, o protagonista passa por um processo de transformação comportamental que evolui para a radicalidade quase irracional. Todo este desenvolvimento inicial é bem conduzido por Abbou, ganhando ainda mais camadas de interesse graças às citadas questões sociais e raciais que se impõem sobre a condição de Paul. Mesmo sendo um homem letrado e bem-sucedido, o modo como os outros o enxergam, bem como o tratamento que lhe oferecem, reflete os preconceitos enraizados na sociedade – dos policiais que o tomam como invasor de sua própria casa, passando pelo juiz reticente sobre o caso ou pelo desdém dos funcionários da prefeitura.

Todos funcionam como agentes opressores na realidade de Paul, a quem, mesmo com suas conquistas, não é permitida a ascensão plena dentro da chamada meritocracia. Quando consegue trabalhar estes elementos apenas com o poder das imagens – caso da cena em que Paul, silencioso, arremessa a estátua no lago – ou de modo subtextual, como nas insinuações dos diálogos na festa de aniversário, Abbou extrai o melhor de seu material, criando uma representação contundente. Entretanto, em diversos momentos, o cineasta não resiste a uma exposição literal, e à necessidade de verbalizar excessivamente o discurso, esvaziando-o, em parte, de sua força alegórica. É o caso do enfrentamento abrupto e desmedido com um aluno em sala de aula – coincidentemente, e convenientemente, enquanto discutia as ideias de Locke sobre os Direitos Naturais do homem – ou mesmo da própria fala de Paul para um colega professor sobre seu comportamento de “negro amigável” não ser suficiente aos olhos da maioria branca.

Da mesma forma, Abbou também não resiste ao mergulho final nos arquétipos do subgênero do thriller de invasão, quando acaba por materializar a expressão popular “Quem anda com porcos...”. Um encaminhamento pra um desfecho com toques trágicos e uma explosão de violência que já se anunciava no texto inicial – sobre mudanças feitas na trama em respeito às vítimas reais – e que reforça a filiação de Estranhos em Casa com sua inspiração principal, o clássico Sob o Domínio do Medo (1971), de Sam Peckinpah. Embora o terceiro ato seja, de fato, mais derivativo, Abbou ainda consegue trabalhar tais convenções com competência e certas ousadias estéticas – caso da sequência do delírio entorpecido no banheiro da festa ou nas imagens que acompanham os créditos finais, de teor moralmente provocativo, confrontando a desconstrução de masculinidade sugerida até então. Assim, mesmo não resultando tão impactante ou instigante no conjunto como em seus melhores momentos isolados, o longa se mostra capaz de imprimir alguma reflexão ao exercício de gênero proposto.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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