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Sinopse

Ex-fuzileiro naval e estudante de Direito, J.D. Vance vê seus sonhos ameaçados pela necessidade de voltar à cidade onde nasceu e lidar com uma crise familiar. Ele embarca numa jornada feita de autoconhecimento e reflexões.

Crítica

Era uma vez um sonho é um título bastante genérico para o original Hillbilly Elegy, e essa é uma verdade difícil de ser negada. No entanto, é importante estar atento que a culpa para esse batismo não é da Netflix, produtora e distribuidora do filme em todo o mundo – inclusive no Brasil – mas, sim, da editora, que lançou antes por aqui o livro autobiográfico de J.D. Vance no qual o longa se baseia. O espectador que decidir investir nessa história, porém, fará melhor se permanecer atento ao nome real, que poderia ser traduzido como Elegia ao Caipira. Uma explicação sobre o termo ‘elegia’, de pouco uso na língua portuguesa, também se faz necessária: ode, enaltecimento, de caráter melancólico ou nostálgico, segundo o dicionário. Bem o que é possível encontrar no drama conduzido com mão pesada por Ron Howard: personagens deprimentes, feitos violentos e agressivos, uma absoluta ignorância em relação ao mundo e uma total falta de empatia em relação ao próximo vinda daqueles que demonstram orgulho pelo tamanho de suas desgraças.

Esse poderia ser um retrato interessante, sociologicamente falando, ainda mais em um mundo cada vez mais dividido politicamente, ainda ressentido dos efeitos provocados por homens como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que valorizam justamente o pior do ser humano. Mas esse viés crítico e distanciado, tão urgente ao se abordar questões como as que aqui são ressaltadas, é meticulosamente deixado de lado, substituído por uma proximidade que pouco tem a oferecer ao conjunto para aumentar o interesse do espectador em relação ao que se desenrola em cena. Como resultado, a audiência é obrigada a acompanhar as desavenças e frustrações de uma família na qual praticamente nenhum dos membros demonstra qualquer grau de sensibilidade ou ciência da responsabilidade que dividem por estarem onde se encontram. Assim, o que se vê é um desfile de tipos desprezíveis e arrogantes, dos quais mais se tem vontade de se afastar, ao invés de mergulhar em suas tragédias e infortúnios.

Apesar do alarde feito em torno das duas atrizes de maior destaque – Amy Adams, como a mãe, e Glenn Close, como a avó – o protagonista é mesmo J.D., vivido na juventude por Gabriel Basso (Versões de um Crime, 2016) e por Owen Asztalos (Paterson, 2016) quando criança. É ele que precisa, no meio de uma semana crucial na faculdade, durante as entrevistas que poderão lhe garantir o estágio necessário para prover seus estudos, voltar para casa e socorrer a mãe, que teve uma nova recaída de consumo de drogas, ao mesmo tempo em que flashes da sua infância transitam pela tela. São durante estes momentos que se descobre a instabilidade emocional materna, uma mulher que passou a vida às turras com os pais e também com os filhos, trocando de namorados como quem muda de roupa e pulando de um emprego para outro, sem nunca conseguir oferecer segurança à família. Nessas passagens, também, fica-se a par da presença autoritária da avó, de modos brutos e não muito simpáticos, mas eficazes em oferecer o mínimo necessário quando ninguém mais parecia estar disponível.

Howard ganhou dois Oscars, de Melhor Filme e Direção, por Uma Mente Brilhante (2001), e voltou a concorrer aos mesmos prêmios por Frost/Nixon (2008). Em comum, estes dois filmes tinham o fato de terem sido baseados em histórias reais, assim como Era uma vez um sonho. Nesse último, no entanto, deixa de lado a sobriedade e o discernimento percebido em alguns dos seus trabalhos de maior destaque para abraçar uma causa que se antevê perdida desde os primeiros instantes. Ao invés de propor um olhar mais detalhado a respeito dessa importante parcela da população norte-americana – e, como bem se sabe, mundial – da qual a família Vance pertence, o que o cineasta demonstra é uma preocupação primária em enaltecer uma coletividade de alcance restrito, valorizando os esforços individuais de um ou outro, ao mesmo tempo em que se esforça em reconhecer os valores daqueles que acabam ficando pelo caminho, na maioria das vezes por visões simplistas, como uma gravidez surgida antes do tempo, um pai que bebia demais ou a falta do marido ideal.

Em nenhum momento, no entanto, entram em cena questionamentos a respeito do papel do governo ou da própria sociedade em relação a como cada um pode, enfim, fazer diferença ao todo, e não apenas no que diz respeito ao seu limitado campo de atuação. Assim, diante de uma narrativa que se esforça em alcançar uma identificação vazia, ao invés de estimular um debate que envolva causas e consequências, o que se verifica é o desperdício de duas atrizes que já tiveram dias muito melhores. Amy Adams sofre diante de uma figura triste e infeliz, e assim é também o espaço que lhe é designado, sempre vista em momentos carregados, desprovidos de sensibilidade. Ainda pior é o que acontece com Glenn Close, uma intérprete que sabe trabalhar com sutilezas, mas que aqui se vê soterrada por uma peruca malfeita e roupas largas que emulam a persona real ao mesmo tempo em que restringem o alcance da arte que tem a oferecer. Momentos precisos, como a entrega da comida ou quando decide assumir o neto, que poderiam apontar para pontos de virada, acabam se revelando piegas e exagerados justamente por causa do esforço desmedido em provocar emoção, ao invés de reflexão. Um bom resumo desse Era uma vez um sonho: reações imediatas, incapazes de ir além do próprio umbigo.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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