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Sinopse

Alithea liberta um gênio da lâmpada. Mas, para ele ser realmente livre, precisa realizar três desejos que venham do coração. Enquanto pensa no sentido de ter anseios atendidos, Alithea ouve atentamente a história de vida dele.

Crítica

As mais bonitas histórias de amor da literatura e do cinema são as fugazes, aquelas condenadas ou repentinamente interrompidas pela crueza de mundos incompatíveis com o puro e belo. Há um lirismo particular (e romântico, evidentemente) nessas paixões arrebatadoras cuja intensidade é inversamente proporcional às chances do “felizes para sempre”. Em Era uma Vez um Gênio, George Miller utiliza a fábula para incitar uma disputa afetuosa entre a racionalidade e a crença. A reboque disso, também traz à tona um choque gentil entre e realidade e as fábulas que contamos para melhor digeri-la. Pode-se dizer que o cineasta australiano se inclina em reverência aos fingidores do tipo que foram cunhados em poema por Fernando Pessoa, ou seja, os que "fingem tão bem a dor que deveras sentem". A protagonista é Alithea (Tilda Swinton), narradora que começa dizendo ser melhor dar toques de fábula à história prestes a ser contada, a fim de que o público “compre” melhor a ideia. Portanto, ela está falando da forma que convém ao conteúdo dessa trama costurada durante quase duas horas. E Alithea reveste a autobiografia de atrativos. Como aos criadores é possível florear em busca de efeitos, de conexões específicas com o público, seria aqui inútil investigar o filme em busca das costuras, das fronteiras entre os acontecimentos e as liberdades poéticas. Para todos os efeitos, tudo é história. No fim das contas, realidade e invenção são irmãs siamesas, não antagonistas ferrenhas.

Alithea é especialista em narrativas. Ela vive de desvendar os segredos desse ato milenar de contar histórias para a experiência humana ser preenchida com alguma coerência (seja ela lírica ou lógica). Mesmo sendo uma mulher cética, que cita a ciência como principal avatar da nossa contemporaneidade, ela começa a enxergar literalmente figuras que parecem ter saído dos contos de fadas. Ao esfregar uma lâmpada, se depara com o Gênio (Idris Elba). E ele, conforme manda a tradição, anuncia que precisa lhe conceder três desejos para agradecer pela libertação do cárcere. A partir daí, Era uma Vez um Gênio se subdivide em duas camadas: numa delas, os personagens simplesmente estão conversando num quarto de hotel; na outra, vemos esses causos contados pela entidade extraordinária que perfazem uma experiência única e milenar. Evidentemente, essas camadas estão dentro de uma principal e maior: a da mulher escrevendo um livro supostamente autobiográfico para contar algo marcante. Na verdade, George Miller faz uma verdadeira ode ao encantamento decorrente dos poderes das histórias: o de transferir exemplos, sensações e conhecimentos; e o de servir para especular os significados da existência. E há embates no filme. Alithea resiste em ser tocada pelos causos do Gênio, não porque duvide dele, mas por conta da vacina que o conhecimento lhe dá contra os truques do irracional. Mas, pensar apenas em termos práticos não invalidaria a própria noção de existência do amor?

No entanto, George Miller também não incita um jogo polarizado de gato e rato. Não é disso que se trata Era uma Vez um Gênio. Utilizando um visual deslumbrante, o diretor australiano mais conhecido por um cinema repleto de som, fúria e fuligem – como nos exemplares da saga Mad Max – aqui trabalha as minúcias do discurso para evocar a fascinação duradoura dos relatos. Ele valoriza o efeito profundo que os enredos têm quando o contador compreende o seu público. Sim, pois embora Alithea seja especialista em narrativas e desvende algumas estratégias utilizadas pelo seu interlocutor a fim de desarmar seu ceticismo, o Gênio apela a sentimentos e emoções praticamente universais, as embalando numa tendência ao épico. Então, para falar dos medos dela para assumir desafios enormes, ele conta toda a epopeia dos príncipes que não conseguem lidar (cada um à sua maneira) com a responsabilidade do trono; para tocar no assunto da vaidade, discorre sobre o monarca que manda assassinar o próprio filho para evitar o levante dos revoltosos pregadores da sucessão; para incentivar o ímpeto emancipador da mulher, conta o causo envolvendo a jovem sequestrada e violentada em cárcere privado, mas que tinha uma enorme sede de saber. Então, o Gênio se transforma nesse poeta inclinado a fingir a dor que (e o outro) deveras sente, um narrador que transforma mágoas e máculas em prosas e versos. Já a firme Alithea é a plateia desconfiada, mas que está intimamente querendo ser convencida.

George Miller evoca mitos, lendas e imaginários. O Gênio é como a Sherazade que, na Pérsia antiga, contou histórias por 1001 noites para o rei poupar sua vida. Mesmo num filme de visual tão acachapante, o desempenho dos protagonistas sobressai. Idris Elba carrega no semblante a malícia necessária para sobreviver – quanto melhor se os desejos a serem realizados forem convenientes ao seu personagem – e a melancolia carregada pelos ventos do tempo. Já Alithea é como o espectador insistente em não se deixar levar pelas fantasias que pintam a realidade com tons convidativos. Tilda Swinton se sai igualmente bem (de novo) ao compor a mulher não menos ambígua, com sintomas de insegurança por baixo do verniz que o conhecimento lhe provê. Pena que ela mude de “chave” tão bruscamente depois de se manter firme por tanto tempo, mas nada que indique uma queda acentuada nesse bonito resultado. George Miller planta diversas pequenas simetrias e rimas ao longo da trama – como a Rainha de Sabá engolindo seco quando está encantada e Alithea fazendo o mesmo ao ser seduzida. São estratégias para borrar ainda mais as virtuais fronteiras entre as camadas dessa realidade fabulada pelo cinema que, como diria Jean-Luc Godard, “é mentira a 24 quadros por segundo”. Era uma Vez um Gênio sugere implicitamente a questão: há como a realidade ser melhor/maior do que a lenda? Afinal de contas, nas lendas até os amores impossíveis ficam bonitos, pois são fadados ao eterno.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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