Crítica
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Sinopse
Uma visão da Europa moderna pela perspectiva de um burrinho que encontra boas e más pessoas em seu caminho.
Crítica
Inspirado pelo clássico francês A Grande Testemunha (1966), o veterano cineasta polonês Jerzy Skolimowski dirigiu EO, parábola reflexiva sobre a relação entre humano e natureza. Para isso, ele utiliza a jornada (e o olhar) de um burrinho nascido num circo da Polônia. Há ironia no que principia o calvário europeu desse animalzinho que tende a ser enxergado como uma criatura inocente martirizada em contato com a sordidez humana declarada de diversas maneiras. Eo vivia sob a proteção da artista com quem fazia um número, mas é obrigado a sair desse lar ainda que imperfeito – a cena dele carregando peso e sendo surrado pelo funcionário do local mostra isso – e cair na estrada por conta das reivindicações de associações preocupadas com os direitos dos animais. Corroborando isso, adiante alguém diz a Eo: “não sei se estou te salvando ou te sequestrando”. Com isso, o octogenário realizador demonstra interesse pela complexidade dos cenários ao defender, por meio dessa contradição (ajudar o animal acabou o prejudicando), que até mesmo as boas intenções podem gerar resultados negativos. De toda forma, o bichinho que não é dono do próprio destino começa uma perambulação na qual é vítima e testemunha de diversas manifestações da natureza destrutiva da humanidade. Tanto que em seu único instante afastado de homens e mulheres, na floresta que mais parece um ambiente de fábula, o protagonista até é colocado em perigo diante de lobos e outros predadores à espreita, mas a morte é provocada pelo tiro de uma arma de fogo. Que o salva. Olha a ambiguidade novamente.
O mais próximo da bondade que Eo chega é o carinho da artista com quem fazia o número no circo. A jovem ainda o encontra brevemente outra vez, porém sem ao menos conseguir cumprir a determinação de ficar com ele. Há uma sina bem apontada por Jerzy Skolimowski e que faz do burrinho um típico personagem trágico. E essa condição reflete como o mundo lhe enxerga: essencialmente como animal de carga, bem menos respeitável do que os parentes equinos. Em vários momentos do longa-metragem, Eo é colocado em perspectiva aos cavalos, espécime considerada bem mais nobre. Como quando vemos em primeiro plano o semblante entristecido de Eo e no segundo uma manada de alazões correndo “livremente” pelo campo. Se os cavalos são frequentemente utilizados no cinema como símbolos de uma liberdade plasticamente bela, o burrinho aqui é como o depósito das mazelas de um mundo que tende a ser hostil. Anda que gracioso, ele não é tido necessariamente como animal bonito, seu zurro é quase um grito de dor (embora seja frequentemente utilizado humoristicamente) e a sua brava resistência é propícia à utilização como instrumento de trabalho. Em determinada cena, Skolimowski é didático ao mostrar o cavalo de competição cuidadosamente banhado e coberto enquanto Eo está na baia ao lado, sequer sendo alimentado. O burrinho sofre pelo grave estigma que o mundo lhe atribui.
Jerzy Skolimowski faz de EO um filme menos rigoroso do que A Grande Testemunha, também não recorrendo ao aspecto religioso de modo tão frontal – no filme de Bresson, o burrinho era considerado santo reencarnado pelo gentil dono de um moinho depois de muito sofrer também. Ou talvez poderíamos considerar o longa polonês ainda mais rigoroso, tendo em vista que nele não há, como no francês, uma vida humana tão em simetria a do protagonista animal? Fato é que enquanto Bresson aposta numa leitura mais filosófica dessa vida selvagem que serve de espelho revelador das dores do mundo, Skolimowski lança mão de vários artifícios distintos, como transformar a incursão de Eo pela floresta numa espécie de conto de fadas inquietante. O cinema encarou muitas vezes matas fechadas como realidades alternativas e/ou portas de entradas a elas. Neste filme selecionado pela Polônia para representá-la no Oscar 2023, o realismo do burrinho escapando da fazenda na qual era cativo para ir atrás da parceria dá lugar ao âmbito poético quando ele entra na floresta, com direito à coruja espreitando o novato (imagem recorrente nesse tipo de abordagem) e sons que sugerem ameaças. O cineasta utiliza a câmera subjetiva para radicalizar visualmente a ideia da “perspectiva do burro”, literalmente nos emprestando o olhar do animal em momentos capitais de sua jornada solidão adentro.
Uma das imagens mais perturbadoras de EO é do robô quadrúpede de uma das transições. Sem contexto ou aviso prévio, Skolimowski entrecorta a aventura de Eo com essa aparição insólita, cujo movimento é o de voltar a ficar em pé depois de tombar. Seria um equivalente futuro do burrinho ou simplesmente uma visão desconcertante, colocada estrategicamente entre dois segmentos para provocar e desestabilizar? As duas opções são plausíveis e têm os seus porquês. Portanto, além do testemunho de Eo da destrutividade humana, há certa mítica que contempla fábula e tecnologia. Eo não sofre para expurgar os pecados de ninguém, portanto não pode ser equiparado ao sacrificial cordeiro bíblico do cristianismo. Ele é apenas a testemunha sofredora e impotente, cujo revide surge estritamente no momento da excepcional vingança contra os maus tratos impostos a outros bichos. Jerzy Skolimowski não canoniza Eo na tela, mas se apieda de sua caminhada rumo ao inevitável, durante a qual ele padece em virtude de coisas como a superstição (torcedores o consideram culpado pelo pênalti perdido) e a crueldade do homem na lida com seres vivos classificados descartáveis na estrutura comercial. Ele ainda conhece o padre imerso no mundano, sobretudo em dívidas e brigas por herança, afastado da sua “nobre” vocação. Eo é a personificação da inocência sobrevivendo nesse covil de predadores, talvez em parte associado a esse religioso, pois ambos são azarões. Inadequados, os dois tendem a sofrer.
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