Crítica


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Sinopse

Antes o Brasil era visto internacionalmente como "o país do futuro". Desde 2013, no entanto, cresceu por aqui um desalento enorme que culminou com a eleição presidencial de um extremista como Jair Bolsonaro.

Crítica

Antes que qualquer imagem surja na tela, o cineasta Filipe Galvon faz questão de sinalizar que Encantado: O Brasil em Desencanto é fruto do olhar particular de um sujeito residente em outro país desde 2013, isto é, que observa o Brasil de fora. Portanto, é resultado da perspectiva de quem acompanhou à distância o processo de deterioração político-social pelo qual a nação passou em meio a estratégias obscuras. Ainda no que diz respeito a essa mirada pessoal, ele utiliza seu bairro de nascimento como uma espécie de microcosmo onde é possível observar os efeitos dessas transições marcadas por golpes de estado e transmutações não necessariamente positivas. O Encantando, situado na zona norte do Rio de Janeiro, é também o espaço em que Filipe apresenta um dispositivo visualmente impactante e singelo, principalmente por sua significação poética. Rememorações de um passado recente de ascensão e felicidade são projetadas nas atuais ruínas que gradativamente tomam conta da paisagem. É um recorte sintomático do país convulsionado pela sanha das oligarquias raivosas.

Encantado: O Brasil em Desencanto conserva quase integralmente a noção de intimidade. Filipe faz parte de uma leva de brasileiros que viveram a exceção democrática numa História marcada por atentados contra o estado de direito e as liberdades individuais. Inclusive ele sublinha a importância dos residentes na França para mudar a narrativa da imprensa local, evitando determinadas distorções internacionais sobre a apropriação indébita dos ritos legais. Embora perca algumas oportunidades para mergulhar profundamente nessa singularidade geracional, ele consegue mostrar que tipo de desorientação repercute especialmente naqueles que, ao crescer, acompanharam a euforia massiva com a eleição presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva. Aliás, é evidente a admiração pelo político nordestino que pavimentou seu caminho rumo ao Palácio do Planalto em assembleias de metalúrgicos e demais palanques dedicados às lutas das minorias. O miolo do filme pode ser entendido como uma exumação didática da derrocada que nos deslocou do arrebatamento pela sensação de que o porvir global teria tintas verdes e amarelas ao luto que impera na atualidade polarizada.

Principalmente nessa medula de Encantado: O Brasil em Desencanto, desfilam pela telona políticos como Ciro Gomes, Jandira Feghali e Guilherme Boulos, além de filósofos, professores e analistas sociais de várias frentes. Eles contribuem aos diagnósticos, primeiro, das mudanças promovidas nos quatro governos presidenciais consecutivos encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores e, segundo, do impeachment de Dilma Rousseff como culminância de um plano de retomada de poder por parte das elites. Especialmente o ex-candidato à presidência pela PDT critica abertamente certas escolhas de Dilma, evitando a celebração desprovida de arestas. Ainda que não tenha inclinação a fazer um documentário chapa-branca, Filipe Galvon nunca esconde seu posicionamento ideológico, tanto ao costurar os testemunhos alheios quanto ao projetar sua própria voz melancólica como comentarista da nossa realidade. Após esse processo de dissecação do Brasil, paciente ora vendendo saúde, ora em condição praticamente terminal, ele volta a falar de suas raízes.

Sobretudo nos instantes de diálogo com os seus, ou seja, com essa juventude oriunda das classes populares à qual foi permitida formar-se no exterior (alguns de seus membros inauguraram a noção de ensino superior nas suas famílias), Filipe Galvon se diferencia num cenário com tantos documentários que intentaram capturar o espírito dessa época conturbada. Ao retornar ao Encantando no último terço de Encantado: O Brasil em Desencanto ele é particularmente bem-sucedido na interlocução com moradores indignados que apostam suas fichas e votos num extremista como Jair Bolsonaro e na radiografia desse espaço que representa as degradações que nos acometem a alguns anos. As lágrimas do jovem que se relembra com orgulho do dia em que saiu com o pai metalúrgico para votar em Lula ressoam, bem adiante, no choro desalentado do então deputado Jean Wyllys, emocionado frente aos registros de uma decadência. O arremate é amargo. Constata-se que o Brasil continua sendo “o país do futuro”. Basta que escolhamos agora entre o renascimento e a barbárie.

 

Filme visto online no 7º BIFF – Brasília International Film Festival.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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