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Os silenciosos primeiros minutos de projeção, que acompanham o protagonista no que se mostram os preparativos para uma longa viagem, ditam o tom contido e enigmático que se estende até o último plano de El Pampero, segundo longa do argentino Matías Lucchesi, do premiado Ciências Naturais (2014). O taciturno personagem em questão é Fernando (Julio Chávez), homem que primeiro encontramos em casa, embalando pertences, tomando remédios e ignorando as ligações do filho, antes de pegar o carro e dirigir-se até a marina local para abastecer seu barco com um considerável estoque de mantimentos. Sofrendo de uma grave doença, Fernando planeja partir em uma travessia solitária, cujo propósito parece se dividir entre o desejo de isolamento momentâneo do mundo, em busca de paz e reflexão, e um ato extremo de rendição, de enfrentamento de seu destino iminente.

Seus planos, contudo, são comprometidos quando, na primeira noite de viagem, encontra uma mulher, atordoada e ensanguentada, escondida na embarcação. Trata-se de Carla (Pilar Gamboa), que revela ter presenciado o assassinato de um poderoso homem, conhecido entre os frequentadores da marina. Afirmando não ter cometido o crime, ela pede que Fernando a ajude a atravessar a fronteira até o Uruguai para que não seja acusada e presa injustamente. Trocando o asfalto pelas águas fluviais argentinas, Lucchesi trabalha os elementos clássicos dos road movies e suas jornadas de descobertas e transformações, colocando em oposição a rota de Fernando ao encontro à morte e a fuga de Carla pela vida, à procura de uma nova chance. Esse choque, atenuado no decorrer da convivência, inicialmente forçada, terá efeito sobre ambos, mas especialmente sobre ele, que aparenta encontrar finalmente motivos para seguir vivendo.

Optando pela economia narrativa desde o princípio, o cineasta fornece apenas as informações elementares à compreensão do caráter e dos dilemas dos personagens. Assim, Fernando evitar dar detalhes sobre sua doença ou se aprofundar no tema do relacionamento, que se supõe distante, com o filho, compartilhando, pontualmente, apenas algumas memórias de seu passado. Do outro lado, Carla tampouco se expõe, mesmo no que diz respeito ao assassinato, explicado apenas uma vez, com o questionamento sobre sua culpa nunca sendo, de fato, explorado. O que interessa a Lucchesi é justamente a dinâmica construída sobre aquilo que não é dito, que gradativamente deixa transbordar um afeto autêntico, compartilhado entre duas pessoas que não têm mais ninguém, seja por imposição das circunstâncias ou por opção.

Tal ligação é abalada pela entrada de um terceiro elemento na trama, Marcos (César Troncoso), patrulheiro da região e amigo de Fernando, que se apresenta como uma figura completamente antagônica a dupla principal. Inquieto, prolixo e sedento pelo contato humano, Marcos transmite em sua postura intrusiva uma latente dubiedade, que de imediato faz de sua presença uma ameaça. Com essa nova formatação na dinâmica, Lucchesi se vê diante de diversos caminhos, pelos quais ele nunca chega a enveredar por completo. O viés reflexivo das jornadas de Fernando e Carla, por exemplo, ainda que guarde seus momentos de maior interesse e beleza, como o diálogo às margens do rio, não chega a ter todo o potencial extraído. A mesma hesitação é sentida na oportunidade de desenvolvimento de um exercício de gênero.

Lucchesi investe apenas discretamente no suspense que poderia decorrer da situação de Carla, sendo que pouco se sente que ela corre perigo de ser descoberta pela polícia. Existe um elemento de tensão, de natureza sexual, mais pulsante, relacionado à presença de Marcos na formação de um triângulo amoroso, sempre interrompido quando prestes a se concretizar em alguma de suas pontas. A atmosfera estabelecida por Lucchesi para o confronto final do trio é eficiente, com a transferência do aprisionamento do espaço limitado do barco para o da cabana isolada de Marcos e a chegada de uma tempestade – o “pampero” do título original. No entanto, a resolução é entregue de modo apressado, com revelações e mudanças de comportamento sendo jogadas sem uma elaboração mais consistente, resultando em algo corriqueiro, fugaz.

Essa sensação fugidia acaba se estendendo ao conjunto do trabalho de Lucchesi, que, ainda assim, demonstra um bom senso estético, sabendo equilibrar a claustrofobia dos ambientes internos à fuga pelas paisagens naturais. A direção de atores também é competente, extraindo uma ótima química de Chávez e Gamboa, que conseguem deixar transparecer os efeitos do peso dos segredos, desejos e angústias reprimidas por seus personagens. O mesmo elogio vale para Troncoso, invariavelmente seguro, dando vida ao ardiloso contraponto da dupla. É mesmo a opção pela moderação que por vezes impede El Pampero de decolar. Não que seu singelo desfecho, na constatação da necessidade de ter alguém com quem dividir seus medos, seja desprovido de qualidades, ou mesmo que evitar o excesso temático não seja algo elogiável. Mas, ao deixar de se agarrar ao menos a uma das tantas possibilidades que se põem em seu caminho, Lucchesi não permite que a tensão bem construída rompa sua bolha de contenção para injetar um impacto maior aos dramas apresentados.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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