Crítica


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Sinopse

Ezequiel é um adolescente que fica sozinho em casa durante um mês enquanto os pais viajam à Europa. O jovem gay se interessa por Mono, o skatista de um parque nas vizinhanças, e logo eles iniciam um relacionamento. No entanto, depois de uma viagem de fim de semana, Ezequiel descobre um esquema perverso por trás do que imaginava ser uma história de amor.

Crítica

Cena 1: Ezequiel (Juan Pablo Cestaro) convida um amigo para casa. Ele folheia uma revista pornô e propõe ao colega que se masturbem juntos. Cena 2: Ezequiel vai ao banheiro da escola e encontra um amigo urinando. Ele observa o pênis do colega, mas recebe uma resposta negativa que o desencoraja. Cena 3: Ezequiel se encontra numa praça de skatistas, flertando com os frequentadores. Estas cenas consecutivas constituem os primeiros minutos de El Cazador (2020). O protagonista é descrito exclusivamente por suas pulsões - a “caçada" do título, também representada como “Looking" pela série norte-americana dedicada aos encontros entre homens. O conceito se aplica especificamente à comunidade LGBTQIA+: na impossibilidade de flertar pelas palavras, de maneira aberta e explícita como fazem os heterossexuais, por medo de represálias e agressões, tornam a linguagem corporal mais expressiva, e os olhares, mais agressivos. Os ditos banheirões e as pegações podem ser descritos de maneira erótica, perigosa ou inapropriada, no caso dos olhares moralistas. Ora, o diretor Marco Berger acompanha esta rotina com a placidez de quem observa o adolescente almoçar ou caminhar até a escola. O autor resume a rotina de paqueras a uma descrição curiosamente fria e fatual.

O argentino possui uma maneira particular de filmar corpos e desejos. Por um lado, seu filme é obcecado pelo sexo e pela homoafetividade - todas as cenas refletem os pensamentos do herói por outros meninos. Na escola, ele traz o olhar absorto, porque pensa em Mono (Lautaro Rodríguez) durante as aulas, e adiante, terá o olhar perdido por Juan Ignacio (Patricio Rodríguez). Os sonhos de Ezequiel para o futuro, o relacionamento com a família e os amigos, seus interesses culturais ou políticos são deixados em segundo plano: ele se resume a uma máquina pulsional. Por outro lado, a configuração monotemática se insere num drama repleto de pudores na representação dos temas que aprecia. Berger jamais oferece qualquer cena de sexo, e sequer demonstra a coragem de filmar os beijos entre homens (a única cena será filmada de costas, e rapidamente). Dois meninos se olham e - corte da montagem - estarão dormindo na cama, de cueca, no dia seguinte. Até o afeto será proibido aos garotos e ao espectador: os rapazes apaixonados assistem a filmes juntos, conversam lado a lado, mas se privam de carinho e de qualquer intensidade amorosa. Em outras palavras, esta libido insistente nunca se canaliza em gozo: os meninos ocupam um eterno estado de antessala ao clímax. Os instantes de prazer ou de medo serão convenientemente suprimidos pela montagem.

Isso não impede Berger de portar um olhar fetichista aos personagens menores de idade - se eles não gozam entre si, o ponto de vista da direção trata de erotizá-los para o prazer do cineasta e do espectador. El Cazador é composto por inúmeras cenas com os rapazes de calção de banho perto da piscina ou no banheiro, caso em que a imagem se demora languidamente em seus corpos, em planos de detalhe do ventre, nos torsos e nos pêlos. Filmes ostensivamente fetichistas, a exemplo do ótimo Vento Seco (2020), tratam de levar este aspecto com orgulho à elaboração estética, para que o espectador assista ao espetáculo pelo prisma destes desejos. Já a obra argentina mantém o olhar voyeurista, porque distante, sem se envolver, nem assumir o ponto de vista de Ezequiel. Os estudantes são espiados, enquanto a montagem deixa cada cena durar alguns segundos suplementares para que se contemple os músculos e pernas dos protagonistas. De certo modo, são objetificados pela mise en scène, que restringe o erotismo à relação entre direção e espectador, ao invés dos personagens. Berger parece folhear uma revista pornográfica com seu público, convidando-o a se excitar com o contexto sensual e perigoso. O erotismo não ocorre em conjunção com Ezequiel, mas a partir dele.

Além disso, o longa-metragem apresenta uma cartilha bastante acadêmica, dependente de sucessivos close-ups dos garotos em planos com profundidade de campo reduzidíssima, ou seja, com o fundo borrado. Isso significa que a imagem se contenta com o rosto dos adolescentes, e nada mais. Há poucos sons ao redor, raras interações com a comunidade. De certo modo, os atores esperam o “ação" para existirem, porque nunca possuem função diegética antes de a cena começar. Restringindo os diálogos ao mínimo necessário, o texto privilegia as trocas corriqueiras e esvaziadas: “Tudo bem?”. “Tudo tranquilo”, respondem três ou quatro vezes. A incomunicabilidade se converte num tema voluntário, sobretudo quando o drama/romance pende ao suspense. A trilha sonora já indicava, através de acordes ameaçadores, que havia algo errado no relacionamento entre Ezequiel e Mono. A atuação deste último, meio pensativo, sugere certo desconforto nos instantes a dois. Quando o esquema perverso se revela, Berger evita abraçar a gravidade da situação, e segue acompanhando o conflito sério pela perspectiva indiferente. Ameaças, subornos e chantagens nunca foram tão blasés quanto neste projeto. Embora exista um caráter louvável na decisão de fugir à espetacularização do crime, o autor ignora o peso emocional da descoberta e evita se posicionar junto a Ezequiel, uma vez transformado em presa. O filme mantém a placidez inabalável, e por isso mesmo, contestável.

Devido à guinada entre o segundo e o terceiro atos, El Cazador ameaça enveredar por um caminho sombrio, punindo o estudante por suas iniciativas em direção a outros garotos. Os pesadelos de Parceiros da Noite (1980) vêm à mente. No entanto, a narrativa se recoloca nos trilhos a tempo de evitar uma condenação moral. O cineasta encontra uma via alternativa para sugerir afetos (discretíssimos, porém reais) neste universo de manipulações, e para romper com um círculo de abusos, ou pelo menos sugerir a ruptura desta cadeia num futuro próximo. Ezequiel se limitará, até a cena final, a uma presença emudecida, de expressividade modesta, cuja psique resta inacessível ao público. O filme exige pouco de seu elenco, visto que a resolução dos conflitos se esconde nos saltos temporais. Berger trabalha com corpos desafetados, que se movem de um canto ou outro, usando pouca roupa, posando às necessidades da luz e do enquadramento. Isso não quer dizer que os atores sejam fracos, apenas que são solicitados mais por sua plasticidade do que pelas habilidades dramáticas. O drama tem algo a dizer a respeito dos perigos deste universo clandestino dos encontros gays, porém a reflexão e o posicionamento político do diretor a respeito das violências (seja de repulsa, de preocupação, de alerta) se perdem em meio à atmosfera de torpor com aparência de twink porn, mas sem a coragem de dar autonomia aos personagens para assumirem o ponto de vista e o controle das situações.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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