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É impressionante como alguns acontecimentos violentos ocorridos na América Latina passam em brancas nuvens pelo noticiário brasileiro e sequer geram discussões em nosso país. O assassinato de 14 pescadores da comunidade de El Amparo, na Venezuela, em 1988, por integrantes do exército, nunca teve uma resolução definitiva e famílias que dependiam da pesca para sobreviver acabaram sem ajuda de custo e, o pior, desprovidas de respostas sobre o que realmente aconteceu no meio da floresta. El Amparo, longa-metragem de estreia do diretor Rober Calzadilla, também não está interessado em respostas, mas é isso que o torna um exemplar digno de nota na filmografia de nossos vizinhos venezuelanos.

Não preocupar-se apenas com a reconstituição de um dos ataques mais sangrentos de seu país é o trunfo de Calzadilla, que apresenta os personagens de maneira despretensiosa. O fio condutor é a dupla de amigos Pinilla (Vicente Quintero) e Chumba (Giovanni Garcia), contratados para realizar uma pesca e que acabam dando carona no barco para outras pessoas. Além do uso da câmera na mão, sempre próxima à nuca de uma das figuras, o ar documental fica por conta das conversas entre Pinilla e Chumba serem repletas de dubiedade. Assim como na vida real, nunca ficou claro se ambos eram bodes expiatórios, conforme afirmou o exército venezuelano. No filme, o público percorre um caminho de dúvidas. Seria “pesca” uma senha para outras ações? Por que ambos ofereceram espaço no barco para tantos, inclusive a alguns que não estavam interessados no negócio?

Os atores reforçam a verdade das cenas, incorporando o sotaque e os trejeitos dos moradores da comunidade, deixando ao espectador o questionamento se é mesmo uma ficção que está diante de seus olhos. Essa verdade impressa pelo elenco não busca, sequer por um segundo, uma emoção barata ou convencer o público a respeito de quem é mocinho e quem é bandido. Tanto que balançamos na corda bamba durante todo o filme, ora compadecidos pelos pescadores e suas famílias, ora desconfiados dos propósitos reais de sua aventura na floresta.

Após o desaparecimento dos pescadores, El Amparo ganha mais vozes. As esposas, mães e irmãs dos que partiram trazem novas informações que só tornam o quebra-cabeça ainda mais complexo. A imprensa não ajuda muito, pois acolhe a versão dos militares e faz com que a revolta dos familiares aumente. Calzadilla consegue algo raro num filme baseado em fatos, que é expor diversas faces e não defender uma. Óbvio que os jogos de poder ficam claros nas cenas entre policiais e moradores, mas, mesmo assim, a câmera se comporta como observadora, outro olhar na multidão. Se os mestres do cinema se preocupam com finais abertos, que permitem interpretações diversas, colocando quem assiste também como autor, El Amparo questiona da primeira à última cena, promovendo um debate interno que torna a aventura cinematográfica ainda mais intensa. Por mais que pareça um filme calmo imageticamente, a realização de Calzadilla é, antes de tudo, provocadora em seu conteúdo.

El Amparo é um início de carreira brilhante. Se seguir nesse ritmo, Calzadilla tem tudo para se destacar inclusive entre os tão comentados diretores argentinos, que viraram referência de qualidade quando o assunto é cinema latino-americano. É torcer para que mais produções venezuelanas aparecem em nossas telas, se possível, com a mesma precisão e inteligência.

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é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands.
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