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Sinopse

Luiz Gama foi vendido aos 10 anos como escravo para saldar as dívidas de jogo do pai. Esse jovem nascido de ventre livre se alfabetizou e conquistou de volta a liberdade, tornando-se um dos mais respeitados advogados e abolicionistas de sua época.

Crítica

Há diversos motivos para se alegrar diante de Doutor Gama (2021). Em tempos de disputa de narrativas, quando a extrema-direita multiplica notícias falsas para diminuir o peso da escravidão e da ditadura militar na configuração da sociedade brasileira, a complexa história de Luiz Gama (César Mello) possui valor simbólico. Afinal, o homem negro nasceu de mãe livre, sendo vendido como escravo pelo pai. Mais tarde, superou inúmeras barreiras raciais para se formar em direito e se tornar uma figura central da luta abolicionista. Enquanto veículo de comunicação, o filme ajuda a preencher a lacuna a respeito do papel de intelectuais negros na formação da identidade nacional. Além disso, é comandado por um dos diretores negros mais prolíficos e destemidos da cinematografia recente: Jeferson De, que já se arriscou entre terror, comédia popular e drama. Para completar, o longa-metragem se dirige a um público amplo, procurando dialogar com as classes populares que provavelmente nunca ouviram falar do protagonista nas escolas e na mídia. O diretor e os produtores compram o desafio de oferecer a História brasileira ao público médio – algo que raríssimas obras, a exemplo de Carlota Joaquina: Princesa do Brazil (1995), conseguiram executar com sucesso. Há preciosas intenções cinematográficas, políticas e sociais na origem do filme.

No entanto, cabe questionar as ferramentas utilizadas para transpor esta jornada ao cinema. O autor aposta na estrutura linear e cronológica, passando pela infância, adolescência e fase adulta. Em consequência, investe na trama acelerada onde inúmeros personagens aparecem durante poucos minutos antes de desaparecerem por completo. Qual era a relevância de mostrar o primeiro encontro com a esposa, se a vida afetiva constitui um aspecto secundário da trajetória? Por que dedicar mais tempo a uma bravata nos bares da cidade do que aos estudos de direito, suprimidos pela edição? O senso de prioridades soa curioso. Sem dúvida, as vivências da juventude foram determinantes na formação de Gama, porém poderiam ser aludidas na fase adulta, ao invés de acompanhadas “ao vivo”. Na ausência de prioridade entre os fatos, passagens meramente descritivas adquirem importância semelhante àquelas das reviravoltas complexas, que mereceriam maior atenção – caso da liberdade adquirida pelo então escravo e da mudança de ideia quanto à defesa de um homem acusado de matar o patrão. O olhar fica indeciso entre homenagear Gama enquanto pessoa (o ex-escravo convertido em jurista respeitado) ou causa (o desejo de reparação pelas vítimas da exploração humana). As passagens de romance pelas ruas da cidade correspondem ao primeiro movimento, e a chegada de escravos pedindo ajuda, ao segundo.

As escolhas estéticas refletem esta ambiguidade. Por se desenvolver ao longo de décadas, precisaria de uma montagem capaz de trabalhar de modo orgânico as passagens de tempo (algo que A Vida de uma Mulher, 2016, por exemplo, efetua com precisão). Ora, a montagem brusca de Doutor Gama produz cenas aparentemente cortadas antes de sua conclusão ou propósito, impedindo a contemplação, a dúvida, a ambiguidade. Trata-se de um cinema de ação no sentido estrito do termo: Gama chega, conhece, aprende, briga, se impõe, anda na rua, conversa, disputa, se desloca ao tribunal, defende escravos. A dificuldade de acreditar no afeto do herói pela esposa (Mariana Nunes) ou pelo melhor amigo (Johnny Massaro na adolescência, e Higor Campagnaro na fase adulta) se deve ao tempo limitadíssimo dedicado às interações cotidianas entre eles. Às vezes, uma cena de café da manhã diz muito mais sobre personalidades envolvidas do que suas ações, no entanto, o roteiro salta abruptamente entre instantes importantes, retirando o peso necessário para serem compreendidos como causas ou consequências dos demais. Por isso, soam inverossímeis: 1. Gama afirma que não sabe ler, mas o amigo propõe ensinar – corte – 2. Este último vangloria as diversas línguas faladas com perfeição pelo herói – corte – 3. Uma mulher lembra que ele é um dos maiores advogados do país. Como tudo isso ocorreu? O esforço efetuado pelo protagonista para atravessar a jornada de exceção é estranhamente retirado do filme.

Em paralelo, a produção tenta construir um épico tradicional, envolvendo navios negreiros, casarões do início do século XIX e escravos vendidos em praças públicas. Esta proposta exigiria uma grandiosidade distante do resultado final. Teria sido mais interessante investir em alternativas estéticas e narrativas, a exemplo do deboche dos cenários de papel e do humor irônico em Carlota Joaquina, do ponto de vista distanciado das crianças em O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006) ou do devaneio poético de Sertânia (2020). Ao visar os efeitos do cinema clássico, o filme sublinha suas deficiências: as ruas estão sempre vazias demais, as praças públicas soam abandonadas, o navio negreiro tem menos de meia dúzia de homens e mulheres transportados à força. O som atrapalha bastante o processo de imersão. Não há ruídos no bar, na venda pública de escravos, nem diante de um resultado inesperado no tribunal. A construção sonora se pauta excessivamente pelas falas em detrimento dos sons ambientes, razão pela qual o resultado remete ao dispositivo teatral. Falta textura, cheiro e cor às imagens acadêmicas demais. Quando a direção se lança numa rara ousadia (o deslocamento horizontal evitando o plano e contraplano, a montagem intercalada entre manhã e noite), os recursos resultam deslocados dentro da narrativa convencional. Já o enfoque na lua cheia e na floresta coberta pela névoa espessa alude a um aspecto fabular nunca aprofundado.

A cena mais interessante ocorre nos primeiros minutos de filme. Doutor Gama se inicia com o advogado em pleno exercício da profissão, discursando no tribunal. Ele se vira ao júri, à câmera e, por extensão, ao espectador, acusando-nos de explorar os negros, de sermos conivente com os abusos de direitos humanos, de acreditarmos que interesses econômicos justificam a desigualdade. O espectador contemporâneo é diretamente confrontado pelo Luiz Gama de 150 anos atrás. Neste instante, a sociedade do século XXI se compara àquela atual, ao passo que a herança do racismo estrutural se transpõe aos dias presentes. Trata-se do melhor, e talvez o único, instante em que a obra soa arrojada, efetuando uma ponte metafórica com os nossos dias. A sequência inicial se dedica à reflexão, subvertendo tradições do cinema (a quebra da quarta parede) e da sociedade (as acusações formais de benefício dos brancos, ainda hoje, pela escravidão). Passada a bela abertura, o projeto se torna refém da sucessão dos fatos e da importância do tema: Luiz Gama é observado por um ponto de vista externo que se limita a apresentá-lo e descrevê-lo. Por isso, jamais enxergamos o mundo por seus olhos, nem compreendemos as radicais mudanças de posicionamento adotadas ao longo da vida. O abolicionista ocupa o papel principal, porém jamais controla o discurso – conhecemos os fatos centrais deste percurso sem acessar sua subjetividade. Deste modo, o linguajar excessivamente pomposo de César Mello, a entrega visceral de Sidney Santiago e Mariana Nunes e o domínio impressionante de Clara Choveaux para os diálogos perdem o impacto: os personagens ficam presos à condição de objetos de estudo, ao invés de sujeitos do discurso.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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