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Sinopse

Escritor de sucesso convidado para receber uma homenagem na universidade que um dia o rejeitou, Harry Block é confrontado por personagens reais e ficcionais, aos poucos entendendo como suas histórias afetaram as pessoas.

Crítica

A cena inicial de Descontruindo Harry, que mostra o caso entre um homem e sua cunhada, é interrompida pela mulher furiosa que adentra o apartamento do autor Harry Block (Woody Allen) acusando-o de expor a intimidade deles num livro. Portanto, o que víamos antes era uma dramatização, dispositivo que se repetirá ao longo do filme como maneira de evidenciar dois níveis narrativos: o ficcional e o real. Certa indistinção gera uma reflexão a respeito dos limites tênues entre vida e obra, num tom que mescla bom humor e melancolia. Incapaz de lidar com as próprias emoções, o protagonista imprime-se no trabalho, faz de suas neuroses e opiniões verdadeiras o substrato dos personagens que cria. Harry funciona melhor no âmbito da arte, pois completamente inábil para as relações cotidianas.

As figuras que transitam em seus livros têm sempre algo dos amigos, das ex-mulheres, dos familiares ou dos conhecidos. Os protagonistas, claro, possuem características suas. Do garoto que casa jovem para sair do convívio com o pai rancoroso, ao ator que de uma hora para outra literalmente perde o foco, todos são um pouco Harry. Por meio deles, o escritor expurga os próprios demônios, ainda que nem assim encontre paz ou realização plena. Quando convidado à homenagem que lhe prestarão na faculdade de onde foi expulso anos atrás, ele se depara com a solidão. Antes tão autossuficiente, questiona a validade pessoal do reconhecimento já que não tem com quem dividi-lo.

Dizer que Descontruindo Harry deve, em linhas gerais, a Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman, filme no qual igualmente alguém passa a limpo sua vida a caminho de receber homenagem acadêmica, é o mais óbvio. Afinal, fora a similaridade da situação, é notória a admiração de Woody Allen pelo cineasta sueco. Para além dessa referência, o filme transpira um questionamento existencialista que parte do ponto de vista artístico, daquele que coloca boa parte de si na criação. Harry não é uma vítima, de fato bagunçou a vida das pessoas próximas, incluindo a mãe de seu filho, a irmã, e mesmo a mulher mais jovem que ele vê escapar aos braços de outro. Ao contrário do que pensa inicialmente, percebe-se incapaz de controlar tudo. A vida transcorre mais fácil nos livros, ali onde ele é onipotente.

Na estrada, acompanhado de uma prostituta, do amigo ocasional e do filho, ficção e realidade friccionarão ainda mais, pois personagens irão ao seu encontro para detonar convicções até então inabaláveis. Descontruindo Harry é talvez o filme em que Allen mais reflita sobre os ecos do artista em sua obra, justo ele que sempre faz questão de rechaçar similaridades com os neuróticos que ora apenas cria, ora também interpreta. Será mesmo que, independentemente do grau e das liberdades poéticas, não há sempre parte do artífice no fruto de sua arte? Woody Allen mais uma vez utiliza o riso para relativizar (sem banalizar) pequenas tragédias, para mostrar suas facetas ordinárias, como na sequência da descida ao inferno, lá onde Harry quer resgatar a mulher amada, não sem antes dividir uma boa dose de tequila com o diabo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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