Dente por Dente

Crítica

O primeiro elemento de destaque em Dente por Dente diz respeito ao escopo da produção. Trata-se de uma obra bastante profissional no sentido de possuir elenco de destaque, direção de fotografia preciosista, uma riqueza notável de cenários e figurinos, trabalho muito afinado de som e mixagem. Filmado na cidade de São Paulo, o suspense policial possui ostensivo “valor de produção”, ou seja, ele se afirma enquanto uma obra dotada de evidentes recursos e conhecimentos técnicos. Este é o tipo de projeto capaz de impressionar na tela grande do cinema, e também nos currículos dos principais cabeças de equipe. No caso, tamanho apuro é aplicado a um imaginário cinematográfico convencional. Primeiro, investe-se na construção originária de Drive (2011), com Juliano Cazarré interpretando o Ryan Gosling brasileiro. A ideia de um herói taciturno transitando por corredores de hotéis, vestindo a mesma jaqueta de couro da primeira à última cena, com o brasão chamativo de um animal nas costas, deriva diretamente do filme de Nicolas Winding Refn. Os planos de detalhe no punho do protagonista pronto para o combate, além do ataque violento com um martelo soam como fortes inspirações (para não dizer “cópias”) do original norte-americano.

Há outras referências em jogo, provenientes especialmente dos seriados procedurais, também estadunidenses, nos moldes de C.S.I. e semelhantes. A figura do legista engraçado/exótico, a personagem da mulher negra no papel da hacker do escritório, o chefe grisalho com objetivos escusos e a beldade capaz de sacar uma arma no momento certo correspondem à configuração muito específica da investigação hollywoodiana. Entretanto, estes personagens se resumem a meros arquétipos a partir do momento em que não surtem qualquer efeito nos rumos da narrativa: a garota responsável pela parte da tecnologia não coloca seus conhecimentos em prática; a filha do chefe, com quem o herói se relaciona (é claro), apenas recebe informações de terceiros e reage às mesmas, os capangas surgem sabe-se lá de onde, quando o protagonista precisa ser confrontado. Rouba-se dinheiro sem se preocupar com o local onde o tesouro será escondido e, mais importante, com a possível utilização do mesmo. O personagem principal não possui família, não volta para casa, não descansa, não faz planos para o futuro. A investigação ocorre por meio de um automatismo contestável: como ele consegue tantos dados sobre alvos perigosíssimos de uma máfia paulistana?

O aspecto sobrenatural e a questão do sonho pretendem responder parcialmente a essa pergunta. Dente por Dente utiliza a metáfora literal do dente uma dezena de vezes. Por mais chamativa que seja a imagem de uma boca sangrenta com os dentes arrancados, a simbologia deste ato apenas se repete sem se desenvolver. Assim como as inúmeras frases de efeito, também repetidas (“O que desaparece, sempre volta”), os dentes constituem um recurso retórico, incapaz de aprofundar a personalidade do vigia noturno, nem fazer avançar a trama. O fato de a narração verbalizar o provérbio relacionado ao título tampouco contribui à sensação de desgaste. O filme reincide em alguns dos clichês mais gastos da impressão de suspense, porém sem construir personagens ou conflitos passíveis de sustentar tal ambientação. Os reflexos em poças d’água aparecem mais de uma vez, junto dos vultos assustadores atrás do protagonista, os rostos fragmentados em cacos de vidro, o vilão com um dente de ouro, a mulher perigosa que apaga o cigarro no café alheio etc. Trata-se de gestos de bravura reforçando a imagem cristalizada de vilões e mocinhos marcados por muita atitude e diálogos explicativos. “Vocês eram próximos, né?”, “Teixeira era meu sócio”, conversam duas pessoas que sabem muito bem da proximidade entre as pessoas citadas, e também da sociedade em questão.

Oferece-se um cinema de ação masculino à moda antiga, algo que mesmo os referenciais norte-americanos contemporâneos estão tratando de desconstruir. A ideia do mocinho forte, branco que obviamente vai conquistar a moça mais bela da trama, lutar sozinho contra todos os adversários e derrubar o chefão de uma gangue constitui um ideal de grandeza anacrônico em pleno ano de 2020. Quando tantos críticos, ativistas e cinéfilos em geral cobram que os projetos também sejam escritos, dirigidos e produzidos por mulheres, pessoas negras e periféricas, a solicitação não visa apenas dar emprego a categorias subrepresentadas no audiovisual brasileiro (embora esta também seja uma questão importante). Trata-se de desconstruir este universo de onipotência do macho alfa, diante do qual as mulheres constituem fetiches e os vilões representam meros obstáculos em busca de conquista por soberania. Fala-se em malas de dinheiro, especulação financeira, “estancar a sangria” e movimentos de ocupação, no entanto nenhum destes temas assume o protagonismo do filme, ou contribui a atualizá-lo à realidade específica do Brasil. A máfia imobiliária poderia perfeitamente se encaixar numa gangue de drogas, de cassinos ou qualquer atividade equivalente.

Mesmo assim, os diretores Júlio Taubkin e Pedro Arantes contam com um ótimo elenco, capaz de encarnar os seus tipos com competência. Juliano Cazarré sabe trabalhar tanto a introspecção quanto as cenas físicas. Paolla Oliveira faz milagres com poucos minutos em cena, enquanto Digão Ribeiro cumpre com sobriedade a ingrata parte sobrenatural da trama. O resultado impressiona mais pela bela embalagem, pelos nomes em cena (incluindo Renata Sorrah em participação de luxo) do que pelo roteiro ou o discurso extraído desta narrativa. Ao se apropriar de formatos tão cristalizados pelo mundo inteiro, não basta explorar (muito bem, convenhamos) os espaços de uma cidade, nem mencionar por alto movimentos populares, se eles não possuírem voz nem protagonismo no desenrolar dos fatos. Ressalvas à parte, com sua duração enxuta e ritmo preciso – não há uma única cena acelerada demais, ou arrastada em excesso – o projeto representa uma busca interessante pelo “filme do meio”. O suspense pode constituir uma das raras obras responsáveis por conquistar a atenção da crítica ao mesmo tempo em que reata o público nacional com seu cinema, fragilizado pelo fechamento do circuito exibidor, pela interrupção das leis de fomento e pelos ataques institucionais aos trabalhadores do audiovisual.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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