Crítica
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Sinopse
Um detetive é designado para investigar o caso do homem que morreu ao cair do pico de uma montanha. Diante da viúva, o homem fica intrigado, pois ela não demonstra nenhum sinal de agitação pela morte recente do marido.
Crítica
Desde que o cineasta britânico Alfred Hitchcock decidiu batizar um de seus grandes filmes como Vertigem (Um Corpo Que Cai, 1958), esse substantivo adquiriu um sentido poético específico no cinema. Ele geralmente indica experiências mais complexas do que uma sensação física. Passear de montanha-russa ou num labirinto pode ser corporalmente vertiginoso. Porém, essa vertigem cinematográfica está mais associada a um perder-se dentro de si próprio, às vezes, em virtude da obsessão por algo/alguém. No longa-metragem sul-coreano Decisão de Partir, é exatamente essa a percepção de vertigem que o realizador Park Chan-wook impõe ao espectador. Do início repleto de mudanças abruptas de direção, passando pelo crescente envolvimento de um homem aparentemente sólido com uma mulher supostamente líquida, chegando ao clímax emparedado entre a neblina e o mar, tudo gira em torno da impressão de um atordoamento ameaçador e sedutor. O pano de fundo dessa trama cheia de nós é a investigação de uma morte que, rapidamente, se transforma numa averiguação do interesse/amor nascido num ambiente estranho. Nele, as pulsões de vida e morte se entrelaçam como se fossem fundamentais uma à existência da outra. É nessa ideia de um “perder-se” por temer a morte, assim como é temeroso um amor tão incontrolável, que se dá um filme muito mais atmosférico do que qualquer coisa.
Jang Hae-joon (Park Hae-il) é um policial designado para apurar o caso do sujeito que morreu ao cair de uma montanha na qual acabara de escalar. A viúva, Song Seo-era (Tang Wei), atrai para si as desconfianças desse homem da lei ao não esboçar sequer um abalo pela tragédia. Portanto, o que engatilha o interesse de Hae-joon é o rompimento de uma expectativa, especificamente o quanto Seo-era destoa do esperado. Ela se transforma imediatamente num enigma pronto a ser desvendado, mas se torna um daqueles redemoinhos prestes a tragarem curiosos para o seu centro, dos quais ninguém sai totalmente ileso. Park Chan-wook constrói de maneira inteligente essa profusão de sensações, compreensões, entendidos e subentendidos por meio da famigerada mise-en-scéne, ou seja, pelo modo como distribui os elementos em cena e os faz estabelecer sentidos relacionando uns aos outros. Um aparentemente simples interrogatório se transforma num estudo contundente de intenções por meio da fragmentação de pontos de vista e pela alternância expressiva de poder enfatizada semioticamente. Às vezes Park Chan-wook enquadra o policial e a suspeita a partir de fontes distintas – ele, da “realidade”, ela, da captura do monitor de vídeo, o que sugere a representação. Os tetos baixos que indicam pressão, as mudanças abruptas de direção e os avanços repentinos no tempo são outros sinais claros disso.
A citação a Um Corpo Que Cai no primeiro parágrafo deste texto não foi um simples subterfúgio para evocar a autoridade da “vertigem” como um atributo previamente testado. Decisão de Partir é evidentemente devedor da obra-prima hitchcockiana, da qual se aproxima de modo bem evidente. Primeiro, do ponto de vista da premissa: policial obcecado por uma mulher misteriosa ao tentar compreender os efeitos de uma queda das alturas. Segundo, da perspectiva dessa vertigem: muito mais do que uma sensação momentânea de desorientação, ela se assume como sintoma permanente, decorrente do acesso aos locais obscuros do desejo. Porém, no filme de Alfred Hitchcock, o policial se tornava alucinado por uma jovem comprometida que morreu depois de uma queda cercada de enigmas, enquanto no longa-metragem de Park Chan-wook o protagonista está mais para alguém tomado pelo perigo quase insondável que lhe desarma com um sorriso ambíguo. Song Seo-era está longe de ser a “mocinha em perigo”, arquétipo utilizado exaustivamente no cinema. Pelo contrário, ela é esse olho do furacão que arrasta um homem acusado pela esposa de ser vivaz somente em meio à violência e à charada dos casos irresolutos. Hae-joon sente atração e medo por essa mulher que pode ser apenas uma azarada ou alguém capaz dos planos mais ardilosos para acabar com a vida alheia. Uma vítima ou uma viúva negra?
O que acentua a complexidade de Decisão de Partir é a atenção dispensada à principal personagem feminina. Ela nunca é relegada simplesmente ao papel de alvo ou objeto obscuro de desejo. Mantendo-se enigmática também ao espectador, Seo-era encontra uma forma linda e dolorosa de perpetuar o amor que Hae-joon sente por ela. Num filme em que o romantismo não vem por meio de beijos intermináveis ou de algo que o valha, o maior gesto de compreensão do outro é a maneira que Seo-era encontra para ser eterna na memória de um homem cativo da própria obsessão mórbida. Não é proporcionando ao sujeito uma tórrida noite de sexo ou mesmo derramando-se em juras de amor eterno que ela se torna, provavelmente, uma memória incontornável. É se transformando num enigma sem a possibilidade de resolução. De certo modo, a suspeita de ser uma ardilosa assassina compreende o seu amado como ninguém, ao ponto de perceber o quadro com os casos sem solução enquanto a chave para se perpetuar na lembrança de Hae-joon. Park Chan-wook demonstra uma perícia notável nesse filme que utiliza deliberada e perigosamente a repetição (algo próprio dos redemoinhos, cujos movimentos circulares são aparentemente iguais, isso enquanto deslocam vagarosamente tudo ao seu centro perigoso). Cabe-nos, como espectadores, mergulhar no desafio de tornar perceptíveis cinematograficamente os elementos abstratos que dão conta dessa paixão cega pela obsessão.
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