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Sinopse

Seis sambistas paulistanos sonham em viver da música. Mas, enquanto isso não acontece, eles precisam se dividir entre dias labutando em trabalhos precarizados e noites em busca do sonho de serem reconhecidos por seus talentos.

Crítica

Este drama toma como ponto de partida a lacuna separando os sonhos de sua concretização, ou ainda, a dificuldade de se viver profissionalmente de arte. O grupo Zagaia se dedica ao samba com carinho, ensaiando diariamente, mas teima em encontrar uma casa noturna disposta a contratar os serviços de sua música delicada. (“Toca funk!”, grita uma voz na plateia). Uma montagem inicial faz questão de frisar o fato que nenhum deles vive de suas apresentações, sendo brevemente descritos pelos trabalhos mantidos em paralelo: vigia num supermercado, homem propaganda segurando placas no cruzamento entre avenidas, locutor de anúncios numa mercearia de bairro. Eles sustentam um imaginário quase caricatural da miséria, embora todas as noites estejam de volta nas rodas de samba com os amigos e nos encontros do Bar do Surdo, local onde o proprietário, literalmente surdo, não pode escutá-los tocar - a vida do grupo é composta de singelas ironias. Os membros sustentam pequenas paqueras, contanto que as meninas também sejam adeptas ao samba; travam brigas internas por causa da afinação e geram disputas com as esposas por causa do tempo dedicado à banda.

O melhor aspecto de Curtas Jornadas Noite Adentro (2021) se encontra no retrato acalorado da paixão pela música. É visível a importância das composições e das melodias aos seis protagonistas, incluindo o sujeito que anda para todas as partes com o violão debaixo do braço, e o outro que improvisa novas letras com frequência no cotidiano. O diretor Thiago B. Mendonça demonstra carinho pela figura do malandro da periferia, o “vagabundo" nas palavras da esposa, que passa as madrugadas fora e depois visita os amigos na esperança de fazer uma refeição na casa alheia. O autor jamais demonstra piedade por estas figuras, apenas um senso de camaradagem de igual para igual - o diretor inclui a si próprio no papel de frequentador das rodas de samba, escutando com prazer àqueles sons. Ele retira do samba o senso de espetáculo ou de romantização: nenhum dos personagens é visto como um músico excepcional, apenas um sujeito dedicado, preso à rotina sufocante. As dezenas de canções que ocupam desde os letreiros iniciais até a última cena possuem uma função melancólica, espécie de escapatória que nunca permitirá aos personagens saírem de fato dessa vida difícil. “Mas enquanto houver samba / A alegria continua / A alegria continua”, insiste o tema, refletindo o discurso da obra em geral.

Apesar de tamanha empatia, o resultado apresenta fragilidades de produção e finalização. O baixíssimo orçamento não seria um problema em si caso o drama utilizasse as limitações de maneira radical, explicitando-as para fim subversivo e reflexivo - algo que o próprio autor efetuou no belíssimo Jovens Infelizes (Ou um Homem que Grita Não É um Urso Que Dança) (2016). Aqui, a textura do digital de baixa qualidade, as cores lavadas, o eco no som das internas e as restrições de cada cena são deixadas enquanto tais, como se o espectador desprezasse estes aspectos por estar envolvido demais com a música e a amizade. Incapaz de se driblar as restrições financeiras, a estética se apequena, se faz discreta, e torce para passar despercebida. Caso buscassem alguma filiação ao orgulhoso Cinema Marginal, ao qual os personagens poderiam pertencer, os criadores precisariam optar por uma verve inventiva nas formas e assertiva no discurso. Cenas de uma sambista sentada pacificamente, numa captação imagem acinzentada e sem contraste, ou de seu colega flertando com uma garota num plano único de conjunto, frontal e sem relevo, deixam a impressão de que estas mesmas ideias poderiam ser aproveitadas com mais eficiência em outra luz e enquadramento.

De fato, o drama oferece sequências de pouca potência visual e discursiva. Os diálogos e interações carecem de rigor, ainda que se trate de um filme crepuscular a respeito de figuras desiludidas. A música ocupa tal espaço que o cotidiano entre cada roda de samba se aproxima de mero interstício, espécie de recheio entre as apresentações. A direção hesita entre abraçar um aspecto naturalista (caso dos amigos dormindo lado a lado, ou acordando o colega com uma marmita trazida da casa da mãe), ou próximo do fabular (as cenas exageradas com Dona Vera, a batida policial). Embora preze pelo cotidiano e fuja às reviravoltas narrativas, o filme poderia pelo menos oferecer momentos ambiciosos em termos emocionais ou metafóricos para os personagens. Ora, o olhar da direção segue os colegas dia após dia numa dinâmica conformista, estimando que a vida é assim mesmo, e “o samba vai acontecer”. Nenhum protagonista possui relações particularmente potentes com os demais, e tampouco demonstra objetivos precisos. Trata-se de uma obra presa ao eterno presente, embora saudosa do samba raiz e ecoando a época de criminalização deste estilo musical. De qualquer maneira, não há futuro para além dos sonhos mencionados pelas letras das canções. O inabalável desencanto desta narrativa linear torna a experiência bastante morna ao espectador.

Curtas Jornadas Noite Adentro gira em círculos, voluntária e literalmente. Ora a câmera efetua longos giros dentro da roda de samba, pulando de rosto em rosto; ora a montagem reaproveita cenas anteriores (os amigos tocando perto da porta aberta, na abertura), sem falar nos problemas judiciais e sentimentais que voltam a aparecer. Trata-se de um filme crônico, ao invés de um filme-crônica. Os seis sambistas nunca têm problemas no trabalho, família pra criar, contas a pagar, ou qualquer outro dilema para além do desejo de tocarem e serem escutados, de compor e praticar. Eles vivem para a música, e o filme também. Esta é uma experiência modesta e incompleta. O espectador nunca acompanha os personagens de fato: a briga é filmada de fora do bar; a cena final ocorre à distância, do outro lado da rua; os músicos tocando na introdução o fazem apesar do olhar do público; o colega preso se vai sem sabermos de seu estado ou perspectivas de retorno. Para um projeto sobre o amor à arte, o desejo de viver profissionalmente da criação, falta furor, enfrentamento ao sistema, tentativas simbólicas ou concretas de driblar dificuldades. Os colegas, de atitudes e gestos semelhantes, se contentam com a pequenez de suas rotinas, e a direção os acompanha. Há tanta ternura pelo samba quanto indiferença pelos fatores estruturais que o colocam à margem da sociedade.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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