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Sinopse

Durante a eleição para prefeito, uma cidade é dividida entre os partidos Azul e Vermelho, grupos que representam as oligarquias reinantes no lugar. A água passa a ser a principal moeda de troca na compra de votos.

Crítica

Às vésperas de eleições para vereadores e prefeitos no Brasil inteiro, chega à Mostra de São Paulo uma ficção abordando precisamente a viciada estrutura das eleições a vereador no município de Gravatá, Pernambuco. Talvez a coincidência das datas torne Curral (2020) ainda mais atraente aos olhos do público; talvez apenas sature a comunicação a respeito de políticos corruptos, promessas milagrosas e polarizações acentuadas. É impossível não enxergar nesta fábula um retrato do Brasil imediato, tão semelhante às reviravoltas da trama que produz certo questionamento quanto à capacidade de distanciamento. Obviamente, o roteiro não aborda as eleições de 2020, tendo sido elaborado muito antes do ano atual. Além disso, a prática de subornos e intimidações ocupa o cenário democrático há tempos incontáveis, opondo os tradicionais grupos vermelho e azul (as cores dos opostos políticos no Brasil, nos Estados Unidos, na França etc.). Mesmo assim, cabe um questionamento essencial: o que esta denúncia teria a oferecer para além da constatação de um problema generalizado e reincidente?

O diretor Marcelo Brennand mergulha o espectador em imagens naturalistas. A fotografia acompanha Chico Caixa (Thomás Aquino) em suas andanças pela cidade, subindo e descendo as lajes, entrando e saindo das casas, com uma fluidez praticamente invisível da câmera. O scope ressalta os espaços (há muitos planos de um ponto elevado, revelando o panorama dos telhados das casas e as bandeiras coloridas dos candidatos), enquanto a mobilidade das cenas imprime uma dinâmica ágil: Chico nunca para de se mover, e a imagem também não. Apesar de inúmeras cenas de multidões ou brigas, o som possui impecável senso de prioridades e hierarquia, e a montagem prefere encurtar planos a criar um ritmo contemplativo. Ainda que jamais invista na lógica do suspense, este drama possui um ritmo próximo do thriller pulsante. Os atores contribuem à tarefa: Aquino, de corpo despojado e fala corriqueira, constitui a escolha ideal para o herói “comum”, um homem crente no processo político até ser tragado por ele. Rodrigo Garcia impressiona pela versatilidade: o excelente ator de Amor, Plástico e Barulho (2013) e Tatuagem (2013) se sai igualmente bem no papel do advogado burguês de moral dúbia. Os embates entre o estilo instintivo do primeiro e a composição cerebral do segundo rendem cenas memoráveis.

No entanto, alguns aspectos do roteiro prejudicam a experiência. O primeiro deles diz respeito ao caráter monotemático: Curral aborda as eleições de Gravatá da primeira à última cena, sem aberturas para respiro, nem para reflexos indiretos da pressão política na vida cotidiana dos personagens. Mesmo as visitas de Caixa à ex-esposa se convertem em discussões ostensivamente eleitoreiras, com a presença de candidatos no local. Em paralelo, os encontros amorosos do protagonista se efetuam com uma adversária política (o casal fica literalmente excitado quando descobre um esquema de corrupção praticado pelo rival). Existe um caráter linear e excessivamente literal: debate-se a política pela representação direta de cada etapa do processo democrático, da escolha dos candidatos ao dia das eleições, impedindo que a política adquira um caráter mais amplo, metafórico, impregnando o dia a dia fora do período das campanhas. Enquanto isso, o som acrescenta uma camada explicativa: alto-falantes e programas de rádio nos lembram quais personagem têm a ficha suja, qual é a porcentagem de intenção de voto em cada um deles etc. Paira um aspecto referencial ao limite do opressivo na necessidade autoimposta de acompanhar todos os embates possíveis, dos mais sutis aos fisicamente perigosos, entre os candidatos.

O projeto transmite a impressão curiosa de dizer tudo o que pensa, ao invés de fornecer ao espectador a possibilidade de chegar a esta conclusão por si mesmo – ou ainda de discordar, perceber ambiguidades etc. Testemunhamos os conchavos, a compra de votos, a descrença do povo, a transformação de um candidato honesto em “apenas mais um corrupto”, e descoberta do herói sobre a impossibilidade se praticar a política às beiras do esquema corroído. “Dentro do jogo democrático, cabe sim o dízimo político”, afirma o veterano interpretado por José Dumont, numa curta participação de uma potência assombrosa. Brennand traduz na boca dos personagens o discurso que pretende transmitir – eles se acusam de vendidos, de falsos profetas – apostando numa descrição alarmista, porém sem investigações externas: como esse sistema se criou? Existem pessoas com capacidade de furar as bolhas? De que modo se articulam as campanhas dentro dos partidos azul e vermelho, sobre os quais vemos muito pouco? Mesmo a simbologia do Chico Caixa se torna evidente demais: Caixa simboliza a água escassa, transformada em moeda de troca, além do nome do bairro mais pobre da região, e mesmo do caixa (no sentido de dinheiro) que mobiliza toda a trama.

Sem revelar as duas últimas imagens, pode-se dizer que os planos finais, os mais belos de todo o filme, não apenas concluem bem a trama como também alertam para a falta desta mesma poesia nos 80 minutos precedentes. A associação poética entre duas imagens díspares diz muito mais sobre nossa cegueira política do que tantos diálogos a respeito de candidatos hipócritas e gananciosos. Além disso, Curral corre o risco de soar conformista em relação aos problemas que pretende denunciar. Resta a impressão de que, assim como diria a filosofia de bar, todo político é corrupto, ninguém presta de verdade e o funcionamento jamais será modificado. As duas personagens femininas, as mais contestadoras neste mecanismo, jamais possuem qualquer poder efetivo na dramaturgia, limitando-se ao papel de antagonistas. Talvez residisse nelas a principal reflexão para além da impressão de fagocitose pelo sistema. Ainda que o roteiro encontre certa forma de otimismo para Caixa, ele deixa Gravatá abandonado ao comportamento cíclico. Esta postura funciona tanto enquanto denúncia quanto acomodação ao conceito de que “todo político é igual”, “política é assim mesmo” e outros aforismos que, ironicamente, serviram para eleger as figuras de extrema-direita que se encontram hoje no poder.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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