Crítica


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Sinopse

Vítima de um ataque homofóbico, o músico Scott Jones fica paralisado da cintura para baixo. Ele reflete sobre a sua vida após o crime enquanto coordena o coral da cidade.

Crítica

A experiência proporcionada pelo documentário canadense guarda inesperada afinidade com aquela de Elena (2012), de Petra Costa. Em ambos os casos, a tragédia de um ente próximo propulsiona uma espécie de homenagem poética não apenas à pessoa, mas à lembrança dela, aos sentimentos, à resistência diante do medo e à capacidade de reinvenção de si. Os dois filmes utilizam uma narrativa feminina e particularmente melancólica, para não dizer um tanto chorosa. Muito foi dito sobre o teor misógino das críticas à narração de Petra Costa (sobretudo em Democracia em Vertigem, 2019), e talvez a diretora Laura Marie Wayne tenha enfrentado resistência semelhante devido ao palavreado lânguido e piedoso com que narra a história do amigo. Felizmente, Scott Jones não faleceu como Elena, mas se tornou paraplégico após um ataque homofóbico na saída de uma casa noturna. O trauma, tanto para o jovem músico quanto para a diretora, justifica o ponto de vista calcado nas sensações. Esqueça qualquer fervor tipicamente militante, ou mesmo o teor saudosista das caminhadas e danças que o protagonista não poderá mais fazer. Com Amor, Scott (2018) parte de uma questão essencialmente ligada à corporeidade (a tetraplegia, a facada, a fobia do contato entre dois homens) para atingir a forma mais próxima possível da abstração.

A cineasta encontra sua poesia nas representações clássicas da espiritualidade: a natureza e a música no que diz respeito aos temas, e os desfoques, sobreposições, flares, distorções e câmeras lentas no que diz respeito à forma. O filme possui uma quantidade impressionante de árvores desfocadas, captadas dentro de um carro em movimento; luzes desfocadas das lâmpadas da cidade; reflexos da floresta em espelhos; registros morosos das ondas do mar; câmeras tremidas correndo pelo gramado. Em paralelo, registra-se a emoção de um coral entoando uma canção sobre amor próprio, além do vigor de Scott ao se levantar, com a ajuda de suportes e andadores, para cantar de pé pela primeira vez em anos. O recurso se revela eficaz, no sentido de transmitir o ideal de delicadeza almejado pela diretora. No entanto, carrega a curiosa impressão de uma poesia pré-fabricada, por constituir uma sensibilidade aplicável a praticamente qualquer conteúdo. Não se justifica nenhuma relação tão especial de Scott com árvores e lagos, que saturam a narrativa com uma beleza tão evidente quanto fácil. Mesmo as imagens do coral se encontram no momento pós-trauma, não possuindo qualquer significado particular ao personagem antes do ataque.

Devido a estes recursos, o documentário se conecta com Scott e o tema da homofobia pelo viés da emoção. A cineasta não demonstra conhecimento muito profundo sobre o tema (ela menciona a “identidade sexual” do amigo), porém demonstra carinho sincero por ele. Ao menos, ao invés de retratá-lo chorando e sofrendo, prefere fazer com que o público derrame as lágrimas diante das cenas de canções sobre a solidão, o medo da morte e a volta por cima após alguma provação. Quando a plateia de um teatro aplaude o músico, é de certo modo Wayne que o faz. Um caráter religioso decorre da insistência nas virtudes do perdão (a vítima ensaia o reencontro pacífico com seu agressor), da tolerância (a mãe se questiona sobre a sua responsabilidade no caso) e do linguajar transcendental (“Existe vida e morte nas ondas”, “Inspire a luz e expire o medo”, “A memória é lavada nesta luz laranja”). Ao invés de mergulhar em especificidades dos crimes homofóbicos, o projeto embarca em defesas morais mais amplas a respeito da paz, da fraternidade, da compreensão entre os seres. Talvez o resultado soe despolitizado demais para algumas plateias, sobretudo diante de um tema tão sensível, porém agradará aqueles para quem a inclusão é uma questão de moral.

O resultado é beneficiado pela proximidade da cineasta com seu protagonista. Os habituais testemunhos à câmera são substituídos por conversas descompromissadas dentro de casa, durante ensaios para apresentações ou passeios de carro. A montagem é generosa ao incluir as brincadeiras e provocações, os erros na letra da música, as hesitações. O filme resolve incluir o processo, evitando a assepsia costumeira dos relatos encorajadores. Devido à introdução de leveza nas conversas, consegue equilibrar os instantes mais graves, como a decisão de revisitar o local da agressão. Assim, a farta sentimentalidade não priva o projeto de uma experiência agradável, ao invés de manipuladora, por permitir momentos de respiro e de silêncio. A montagem poderia economizar nas sequências de árvores desfocadas, porém demonstra prudência na condução do material humano. Wayne evita fornecer detalhes sobre o crime, ou mesmo conferir importância grande demais ao agressor. Assim, impede que Scott se restrinja à posição de vítima. Por um lado, esta escolha valoriza a percepção do rapaz enquanto músico, filho, amigo, regente de um coral. Por outro lado, atenua a motivação especificamente homofóbica do ataque.

Embora os letreiros finais alertem sobre os crimes de ódio no Canadá, o filme também evita adentrar o terreno especificamente sexual do conflito. Haveria nuances importantes ao se abordar a solidão entre os gays (e, neste caso, sobre os gays com deficiência física), porém Com Amor, Scott prefere discutir uma solidão generalizada. A mãe do rapaz tenta comparar a violência dirigida a mulheres com aquela infligida a indivíduos LGBT, no entanto, a reflexão não se aprofunda. A diretora prefere as metáforas lúdicas e tristes, como a percepção de Scott sobre sua “nova altura” (quanto ele retorna à cidade natal, enxerga a casa da infância a partir da mesma altura que tinha quando criança, por estar sentado), ou a associação do músico entre estar preso a uma cadeira de rodas e estar preso numa cadeia. A recusa de se debruçar sobre os aspectos inerentemente homofóbicos do ataque, ou mesmo sobre a vida afetiva de Scott, constitui ao mesmo tempo a força e a fraqueza do filme. Esta escolha permite que o projeto circule muito além do nicho LGBTQIA+, chegando a pessoas que dificilmente assistiriam ao documentário caso ele fosse rotulado de “cinema gay”. Por outro lado, impede que indivíduos gays projetem suas angústias particulares naquele caso tão generalizado, apresentado em termos de caráter e valores, de bem e de mal.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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