Crítica
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Sinopse
Mesmo que viva à margem da sociedade, uma jovem pode dizer que tem uma vida tranquila. Porém, essa realidade é abalada quando ela conhece um estranho que possui uma enorme capacidade de inebriar o seu cotidiano.
Crítica
Kate (Ruth Wilson) parece uma daquelas pessoas que seguem vivendo por pura convenção. Ela tem um trabalho que está longe de realiza-la; mora sozinha; além de manter o semblante típico de quem se encontra distante (nem ela própria deve saber onde). Desde os primeiros minutos de Coisas Verdadeiras, a cineasta Harry Wootliff deixa bastante evidente o seu interesse por essa mulher fraturada que acena positivamente ao primeiro sinal de gentileza que lhe fazem. Durante um dia de atendimento qualquer, precisamente depois de levar uma espinafrada do patrão por novamente chegar atrasada, ela conhece Blond (Tom Burke). A conversa entre os dois evolui do protocolar ao flerte em virtude do ímpeto dele, do charme desse homem que anuncia sem melindres ter acabado de sair da cadeia. E a câmera segue bem mais colada nas expressões da mulher do que nas do homem. Há algo de subversivo que chama a atenção de Kate no comportamento do desconhecido a quem ela chamará sempre e genericamente de “loiro”. O sexo às pressas (e às escondidas) num estacionamento esclarece duas coisas sobre ela: precisava urgentemente se sentir querida e tende à submissão. Tais constatações são garantidas por meio de gestos sutis, pilares da composição excepcional de Ruth Wilson. Claro que a decupagem a favorece, uma vez que valoriza essas suas ações. Mas a atriz corresponde à altura.
Muito tem se falando ultimamente sobre relacionamentos abusivos (ou tóxicos, como queiram). Não que eles sejam sintomas apenas da nossa contemporaneidade, longe disso. Mulheres sendo submetidas a toda sorte de violências (físicas e/ou psicológicas) é algo infelizmente presente no tecido social desde que este foi tramado com os fios do patriarcado. No entanto, a discussão sobre o assunto se tornou abundante de uns tempos para cá. E é importante falar disso. Coisas Verdadeiras aborda justamente a dinâmica relacional entre duas pessoas que têm expectativas muito diferentes quanto ao que vivem conjuntamente. No entanto, o roteiro de Molly Davies e Harry Wootliff, baseado no livro True Things, de Deborah Kay Davies, opta por não se deter tanto na subjetividade do homem, fazendo dele quase um símbolo. Toda a nossa experiência é mediada pelo olhar melancólico de Kate. Acompanhamos seus sofrimentos e dúvidas, as visitas indigestas aos pais, as conversas desconfortáveis com a amiga preocupada e as interações com o misterioso homem que parece ter surgido do nada para lhe resgatar da letargia. Ela é a constante em meio às variáveis do filme. Tanto que numa cena dos enamorados passando alguns momentos à beira do lado, o realizador diminui a profundidade de campo e deixa apenas a protagonista visível num primeiríssimo plano. Blond é borrado como se fosse uma ideia.
Aliás, Coisas Verdadeiras deixa margem para colocarmos em xeque a existência de Blond. Além desses expedientes imagéticos que o reforçam como símbolo, há indícios fortes de que talvez ele realmente seja uma projeção mental de Kate. Em nenhum momento vemos o casal interagindo com terceiros; Blond aparece convenientemente em vários instantes, vide quando um encontro da protagonista dá errado e ele se materializa para salvar a noite; até mesmo a falta de informações sobre o personagem pode servir para sustentar a tese de que ele não passa de um holograma mental motivado por vontades e pulsões. Outro sinal disso é o que o rapaz provoca em Kate. Fica evidente que ela é atraída pela imprevisibilidade dele, por sua capacidade de fazer “coisas loucas” e quebrar expectativas. Isso a julgar pela forma como Kate se excita ao burlar o expediente, entre outras garantias de que no fundo queria ser fundamentalmente indomável. E quando Kate tenta ficar com outro homem – no que parece uma dinâmica possível por aplicativos de relacionamento –, ela espera que o pretendente se comporte como Blond, ou seja, de modo impetuoso e condicionado pelo desejo. E a mulher se decepciona diante do cara com menos iniciativa, tanto que isso gera desconforto. Mais uma vez, o filme não precisa dizer “olhem, ela anseia por essa vida”, pois os gestos da sofredora nos levam a compreender isso.
Portanto, uma das coisas que enriquecem Coisas Verdadeiras é não ter certeza se Blond é fruto da imaginação de Kate ou se é alguém que aparece e some feito um fantasma afetivamente irresponsável. De uma forma ou outra, o que está posto no longa britânico é o martírio da protagonista para vencer obstáculos como a baixa autoestima e a dificuldade para dizer não – e essas coisas estão umbilicalmente atreladas. Ruth Wilson tem um atuação notável, carregando em cada minúcia de seu semblante algo que nos permite conhecer melhor e mais profundamente a personagem. Tom Burke também apresenta um ótimo desempenho como o homem imprevisível de passado praticamente sigiloso – tanto que em nenhum momento sabemos porque Blond foi preso por quatro meses. Aliás, no geral, a falta de informações substanciais contribui para que as atenções se voltem quase exclusivamente à conturbada Kate – não sabemos tampouco qual é a natureza de sua função de atendimento. Num cenário em que hegemonicamente somos apresentados a personagens rasos que pegam o caminho AB porque são um pouco de A e um pouco de B (simples causa e efeito), é muito bom ver um filme que, mesmo pecando às vezes ao reiterar desnecessariamente determinadas coisas e pela falta de ímpeto para aprofundar certas proposições, está empenhado em mostrar inteligentemente uma pessoa complexa.
Filme visto online durante a 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.
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