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Sinopse

Como funciona o dia a dia de uma prefeitura? Dentro da cidade de Boston, longas reuniões são organizadas para debater saúde, planejamento, moradia e orçamento. Enquanto isso, a instituição concilia serviços de cantina, monitoramento de semáforos, multas de trânsito, bombeiros, asfalto e controle de pestes em ambientes domésticos.

Crítica

A beleza mais evidente de City Hall (2020) se encontra em sua crença profunda na política. No momento em que o jogo democrático se encontra enfraquecido por campanhas de desinformação, polarizações, acusações mútuas de corrupção e discursos de candidatos “antissistema”, o documentário deposita a confiança na política enquanto via concreta de transformação da vida dos indivíduos. Frederick Wiseman se volta à sua cidade natal, Boston, Massachusetts, para investigar o funcionamento da coisa pública, ou seja, da imensa máquina representada pela prefeitura municipal. O que acontece dentro do edifício durante manhã, tarde e noite? As reuniões entre cidadãos, constituintes e empresários representam de fato a as demandas da comunidade? De que maneira as estatísticas e planilhas se refletem no dia a dia dos moradores? É importante notar que as palavras “Democrata” e “Republicano” jamais são mencionadas. Evita-se criar oposições nos termos de “eu contra eles”: o filme não busca a dinâmica das campanhas, nem a conquista de status pela mídia. Evita-se a percepção da prefeitura pelos filtros do jornalismo ou das redes sociais, acreditando que a rotina da instituição possa falar por si mesma.

A política se encontra despersonalizada, no melhor sentido do termo. Exceto pelo prefeito Marty Walsh, mencionado discretamente pelos personagens, os espectadores desconhecem o nome de tantos subprefeitos e delegados de áreas específicas. Observa-se com mesma atenção os encarregados das finanças, cozinheiros da cantina e vigilantes do controle de pragas em espaços domésticos. Wiseman rompe com hierarquias entre departamentos, colocando cidadãos e servidores públicos em pé de igualdade – o que representa um gesto político relevante. A câmera demonstra a vontade utópica, ainda que muito esforçada, de se encontrar em todos os lugares simultaneamente: nas salas de reunião e nos corredores, dentro e fora do prédio, nas ruas e nas casas, nos comitês da prefeitura e nas reuniões da vizinhança de cada bairro. A duração de 275 minutos se justifica pela tentativa hercúlea de abarcar tanto atividades reputadas quanto aquelas invisibilizadas (a exemplo do arqueólogo exibindo com prazer uma seleção de conchas pré-históricas). O desejo de completude se reflete nos imperativos de representatividade, diversidade e igualdade.

O “cineasta das instituições”, tão voltado aos pilares da sociedade norte-americana tradicional, dedica-se progressivamente às zonas simbólicas onde se cruzam todas as raças, origens e sexualidades. Após dedicar a maior parte de sua carreira à investigação da moral e costumes que fundaram uma nação, Wiseman compreende os Estados Unidos de maneira plural, mais aberta em termos de espaço e escopo. Nenhuma destas escolhas é aleatória: Em Jackson Heights (2015) mergulha em uma comunidade norte-americana de formação recente onde judeus, muçulmanos e católicos convivem lado a lado. Boston constitui uma municipalidade de maioria não-branca, entre as líderes de desigualdades no país, possuindo taxa de criminalidade expressiva para um local de renda per capita tão elevada. Este constitui o símbolo perfeito para estudar não mais a identidade nacional como se construiu até então, mas como pode vir a se configurar após esta fase de ruptura. Aos 90 anos de idade, encarando a tarefa de editar sozinho uma obra de gigantescas proporções, o cineasta se volta ao futuro, o que demonstra otimismo e engajamento, tanto social quanto do cinema. O autor enxerga um país cuja evolução aconteceria através do diálogo e da escuta ao outro. A política volta a significar uma construção coletiva, ao invés de uma disputa onde se vence o adversário e se impõe a vontade do vencedor.

Esteticamente, a linguagem habitual do cineasta se reproduz em escala impensável até então. City Hall transparece a falsa impressão de filme simples, realizado sem esforços por não possuir entrevistas, narração, letreiros ou construções poéticas de qualquer gênero. No entanto, existe uma complexa costura para sustentar o ritmo e a dinâmica, onde cada sequência verborrágica se alterna com uma contemplação silenciosa da cidade. Embora a neutralidade seja impossível no cinema, percebe-se a busca por um olhar tão próximo (fisicamente, com a câmera colada aos personagens) quanto distanciado (no sentido de pouco intervencionista). Para um projeto realizado ao longo de diversos meses, em dezenas de cenários, o trabalho de fotografia e som se revela bastante coeso. A direção sonora determina com precisão em qual voz se focar durante conversas simultâneas, enquanto a fotografia alterna o olhar ente entre prefeito, espectadores e funcionários, às vezes dentro de um único plano. Além disso, a montagem visita diversas vezes as reuniões de moradia e orçamento para acompanhar o desenvolvimento de pautas com o passar das semanas, sinal da preocupação com a concretização das promessas.

Em paralelo, há notável orquestração do ponto de vista. Contrariamente à ideia de que produções observacionais mimetizam a “mosca na parede”, testemunhando ações sem adotar posicionamento, o filme demonstra a capacidade de manifestar opiniões firmes por meio das imagens e da montagem. Wiseman inclui uma cena em que um casal de mulheres oficializa a união, até o momento em que a funcionária afirma: “Eu as declaro marid... Quero dizer, eu as declaro casadas!”. Os desajustes em relação aos direitos LGBT, apesar da boa vontade dos membros da prefeitura, diz muito sobre uma inclusão ainda não plenamente assimilada. Em outra sequência, um grupo de homens brancos, com ideias progressistas, é confrontado por uma mulher muçulmana quanto à legitimidade de seu lugar de fala. Adiante, um empresário negro, proveniente de uma cidade vizinha, acata as ressalvas de uma cidadã negra quanto às intenções pretensamente favoráveis aos moradores locais. Ele lá conheceria a realidade dos bairros pobres? Acuado, um dos representantes da prefeitura responde: “É verdade. Nós não temos respostas para muitas coisas”. Parte confissão, parte saída diplomática, a fala resume o processo político em sua beleza e fragilidade, enquanto construção conjunta procurando conciliar as necessidades de 700 mil pessoas muito diferentes entre si.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em novembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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