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Sinopse

Aos 14 anos, Nora é uma garota que tenta se encaixar em certos padrões. Para isso, segue as meninas que almejam um corpo considerado perfeito, circula com os meninos que fazem bobagens para provocar. Porém, ao conhecer a jovem Romy, por quem se apaixona, sua perspectiva de vida muda drasticamente.

Crítica

Casulo (2020) é um filme dedicado às primeiras vezes. O roteiro acompanha o primeiro amor de Nora (Lena Urzendowsky), sua primeira decepção, o instante da primeira menstruação, o primeiro osso quebrado, a tomada de consciência do alcoolismo da mãe, sua descoberta enquanto mulher lésbica, sexualmente ativa e livre da sombra da irmã mais velha. Trata-se de um coming of age story, ou seja, uma história de formação, uma jornada de passagem à fase adulta. Isso implica numa série de dores e rupturas emocionais que o filme transporta ao corpo por meio de metáforas ao redor da garota, visando representar as decepções da maturidade e a traumática autodescoberta. A ideia consiste em partir de um início infantil, quando Nora tem os olhos arregalados e a fala vacilante, para deixá-la, ao final, pronta para viver os jogos de poder da escola e da sociedade alemã contemporânea em geral. Aproveitando a metáfora do título, a diretora Leonie Krippendorff segue a transformação de uma lagarta em mariposa, capaz de voar por conta própria. Os rumos narrativos serão tão previsíveis e eficazes quanto essa simbologia central.

O longa-metragem empresta outros caminhos conhecidos do público: as regras do filme de férias, com dias ensolarados na piscina, embalados em música pop melódica, quando se apaixona por alguém que talvez nunca se reverá no futuro; o buddy movie, com uma dupla atrapalhada descobrindo seu valor através da união (no caso, a aliança de conveniência com a irmã Jule); e a narrativa do romance inocente, ainda desconectado do sexo e de qualquer malícia. Celebra-se a inocência da personagem que, embora passe os dias navegando pela Internet, desconhece a definição básica de homossexualidade, e não compreende a diferença entre uma amizade profunda e um interesse romântico — ao ver a irmã de mãos dadas com a melhor amiga, questiona o vínculo entre elas. Esta abordagem remete às produções dos anos 1980 e 1990, quando o elogio da pureza se equivalia a uma inocência bruta, ignorante. Para afastar Nora da leitura de uma menina rebelde, a cineasta vai no caminho oposto, ressaltando seus traços intocados pela sociedade. A heroína se assemelha a um filhote de animal domesticado, incapaz de sobreviver na natureza sozinho. Krippendorff gosta de acentuar os traços extremos (o caráter singelo da adolescente contra a agressividade de seus colegas) para intensificar a metamorfose da garota-lagarta.

No entanto, nem tudo funciona nesta ilustração cândida da juventude. O principal tropeço se encontra na escolha do elenco. Não que as atrizes sejam fracas, longe disso. Mas a diretora seleciona adultas para encarnarem adolescentes e pré-adolescentes: no papel da protagonista de 14 anos, que sequer teve sua primeira menstruação, encontra-se Lena Urzendowsky, atriz de 21 anos de idade. Seu interesse amoroso, uma jovem que reprovou dois anos a escola (com idade aproximada de 17-18 anos), é interpretado por Jella Haase, que tem 29 anos. A irmã de Nora, estudante do Ensino Médio, é vivida por Lena Klenke, de 25 anos de idade. Embora se esforcem, nenhuma delas convence numa representação distante de seus corpos e suas expressões. O audiovisual brasileiro enfrentou obstáculos parecidos com a série Boca a Boca (2020) e os filmes O Menino que Matou Meus Pais (2021) e A Menina que Matou os Pais (2021), onde adultos se travestem de crianças e adolescentes, provocando uma artificialidade que dificulta a imersão na história. Reações e composições genuínas poderiam ser extraídas de jovens com as idades compatíveis àquelas de seus personagens. Diversos diretores talentosos já comprovaram o talento para o trabalho com atores desta faixa etária.

Em paralelo, a autora trilha caminhos cinematográficos e narrativos conhecidos. A câmera na mão, tremendo de um rosto ao outro, de um detalhe nas mãos a uma surpresa no olhar, corresponde ao preceito básico da imagem-corpo: o filme segue Nora por onde ela for, colando-se ao seu rosto e à sua nuca enquanto caminha. A imagem estreia, em formato 1 : 1,33 a princípio, se abre numa janela mais retangular — outro recurso utilizado à exaustão pelo cinema teen. A sensualidade no registro dos corpos se movendo sob a água, os close-ups delicados nos beijos e as cenas de masturbação registradas por rostos sonhadores também evocam um imaginário desgastado da sensualidade. A paixão da menina por lagartas reforça a metáfora do título, evidente por si própria, além de converter Nora numa nerd antissocial em excesso. Até o determinismo pode ser estimado anacrônico: o discurso sugere que a inaptidão da heroína face ao mundo decorre da ausência do pai e da negligência da mãe, uma mulher carinhosa, porém incapaz de cuidar das filhas devido ao alcoolismo. A garota se torna fruto de uma classe média abandonada pelo sistema e pelas instituições: a protagonista nunca encontra uma figura materna/paterna alternativa, seja em professores ou amigos, nem descobre seu valor na igreja, na prática de esportes, nas atividades de biologia. Ela se limita a um corpo presente, confuso, de olhos atônitos, errando pelas festas, salas de casa e salas de aula num princípio de inércia. Krippendorff privilegia aquilo que pode ser externalizado, ao invés de sugestões ambíguas quanto ao estado de espírito de Nora.

Por fim, Casulo defende o cinema de reconforto, o que talvez possa ser lido como um gesto político em se tratando de uma obra a respeito de homoafetividades. Afinal, jovens lésbicas possuem o mesmo direito de se identificarem com romances idealizados quanto todas as meninas heterossexuais, que tiveram 99% do cinema elaborado à sua imagem e semelhança até então. Caso fosse realizado há 25 anos, teria provocado um estrondo no circuito, graças ao olhar respeitoso e frontal sobre o lesbianismo. No entanto, ele perde sua potência por se assemelhar a tantas outras produções exibidas deste então, com temáticas semelhantes. Amigas de Colégio (1998), Beijando Jessica Stein (2001) e Meu Amor de Verão (2014) carregam méritos semelhantes, com o acréscimo de terem aberto o caminho para Casulo. A cena da Parada Gay relembra até demais a sequência equivalente em Azul é a Cor Mais Quente (2013). A produção de 2021 deixa de aproveitar os progressos sociais e legais para investir na ousadia ou na reconfiguração de uma estética queer, preferindo a compreensão generalista do que seria “um filme LGBT para toda a família”, ou seja, uma obra a respeito da sexualidade desprovida do desejo de afronta dos costumes. Trata-se de uma fábula de autodescoberta e reconciliação entre diferenças — uma emancipação tímida, singela e carinhosa em igual medida.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
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Leonardo Ribeiro
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MÉDIA
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