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Sinopse

Os namorados Suzane von Richthofen e Daniel Cravinhos assassinaram brutalmente os pais dela. O crime chocou o Brasil e foi sendo ressignificado à medida que as versões de ambos muitas vezes se mostravam conflituosas. Pela perspectiva de Suzane, ela foi uma garota tímida e comportada, corrompida por um rapaz interesseiro. Esta é a versão dela.

Crítica

Em 2019 foi lançado pela HBO o documentário Eu Te Amo, Agora Morra, narrando o caso real de um suicídio supostamente encorajado pela namorada da vítima. A estrutura se divide em partes radicalmente diferentes: primeiro, conhecemos a versão dos procuradores, descrevendo Michelle Carter como uma adolescente manipuladora e calculista. Os indícios são alarmantes. Em seguida, descobrimos a defesa dela, de astúcia comparável - neste momento, Michelle se torna uma jovem fragilizada, enquanto o rapaz morto seria o verdadeiro controlador. O espectador se vê preso entre exposições plausíveis e fortes. O real papel da diretora Erin Lee Carr surge no terceiro ato, quando confronta ambas as teses e discorre acerca da solidão entre adolescentes, inserindo a tragédia na ideologia individualista e belicista norte-americana. A estrutura que opõe leituras distintas dos mesmos fatos é bastante comum no cinema policial, sobretudo aquele situado em tribunais. O interesse decorre do desgaste psicológico, da tensão quanto ao resultado, da investigação de mentiras e deturpações. Trata-se de um motor de conflito por excelência, compreendido enquanto choque de vontades opostas - talvez o formato mais próximo deste subgênero sejam os filmes de boxe, com adversários se digladiando em lados distintos do ringue. Ora, o díptico O Menino que Matou Meus Pais (2021) e A Menina que Matou os Pais (2021) nos priva deste fator primordial: o confronto.

Teria sido interessante descobrir o duelo de explicações articulado pela montagem, lado a lado: como atingir um equilíbrio enquanto as cenas se opõem, as falas se anulam e se provocam? O material separado em dois longas-metragens poderia dar origem a uma experiência potente caso produzisse fricções pela própria montagem. A dissociação em filmes de estética idêntica resulta numa bandeira branca erguida em meio à guerra, uma confissão prévia de derrota - seria como observar a luta de boxe em partes afastadas: primeiro, apenas os golpes de um lutador, depois, somente os golpes do oponente. O caráter de autonegação dos montadores representa aspecto frustrante do projeto dirigido por Maurício Eça, com roteiro de Ilana Casoy e Raphael Montes. Outro motivo de decepção se encontra no tratamento desengonçado do tempo (novamente, uma questão de montagem). A adaptação de um caso real costuma ser cobrada pela veracidade e pela proximidade das pessoas reais e dos fatos, mas talvez ainda mais importante fosse compreender a duração e evolução do processo. Ora, a decisão malsucedida de iniciar a trama pela origem da história de amor entre Suzane von Richthofen e Daniel Cravinhos leva o roteiro a acelerar os passos, suprimindo partes fundamentais à psicologia dos personagens: eles se conhecem e - corte - estão perdidamente apaixonados. Suzana soa como uma garotinha ingênua e - corte - está oferecendo maconha ao namorado e pulando em cima do rapaz na cama. A família rica mal conhece a família de classe média-baixa e - corte - Manfred (Leonardo Medeiros) reclama: “As vezes eu tenho a sensação de que eles estão invadindo a minha família”. Como as primeiras impressões se transformam num problema crônico quase imediatamente? 

A montagem se vê incapaz de trabalhar a passagem de tempo (a elipse pelos pés da garota caminhando no quarto dos pais é risível) e explorar os espaços. De que maneira Daniel Cravinhos teria reagido à mansão da namorada, e ela teria percebido a casa modesta do garoto? Existe um universo de percepções e sentimentos ocultados pela frieza e pretensa imparcialidade. Embora a direção de arte se esforce em criar uma atmosfera plausível dos anos 1990, com roupas adequadas e objetos típicos da época (os óculos de sol de presente de aniversário), o restante soa pouco orgânico, porque voluntariamente exagerado por seus porta-vozes: Suzane tem interesse em apresentar a imagem de uma garota tímida, corrompida por um garoto interesseiro; e ele tem interesse em vender a tese de um menino honrado, utilizado por uma jovem perversa. É óbvio que nenhuma das falas constitui a verdade por si própria, no entanto o longa-metragem dispensa a ambição de construir uma análise própria para além das falas. A narrativa descritiva e linear, interrompida bruscamente no final, produz a sensação de dois longas-metragens mutilados, desprovidos de seus terceiros atos. Por um lado, existe a argumentação no melhor estilo white people problems: a garota estaria descontente com os pais vigiando seu celular, forçando-a a viajar para a praia e para a Europa. Na outra interpretação, Cravinhos seria um assassino vil e interesseiro, ocupando a mansão alheia no melhor modo Parasita (2019). Talvez, reunidas num único filme, as teses produzissem o choque esperado de um drama criminal.

Outros fatores contribuem à sensação de incômodo. A escolha de uma atriz de 30 anos de idade para interpretar uma adolescente estudando para o vestibular reforça a artificialidade do projeto, assim como o namorado adolescente de 27 anos de idade, e o irmão jovem dele, de 35 anos. O uso do rabo de cavalo alto e do macacão com suspensórios, no intuito de infantilizar Carla Diaz, gera efeito grosseiro de caracterização. O protótipo da Lolita se perde quando o filme começa a explorar a nudez da atriz, de modo mais explícito do que o corpo devidamente coberto do ator - até quando será aceitável a assimetria na representação da nudez feminina e masculina? Além disso, a sequência do crime merece questionamento: embora Eça restrinja a duração da matança, deixando parte considerável da violência fora de quadro, ele transmite certa diversão no assassinato, seja pela trilha sonora rock gritante, pelo uso das luzes (um estranho azul e rosa neon rumo à casa do casal Richthofen), pelos planos inclinados e a câmera na mão. Mesmo evitando a carnificina em si, deleita-se com a imagem de Daniel coberto de sangue, com o pedaço de madeira na mão, em sequências mais apropriadas ao cinema de horror do que ao drama. A conversão de Suzane numa psicopata fria (“Já acabou?”, pergunta a Daniel e Christian após as mortes) se traduz no prazer da vilania. Pelas explicações antagônicas e pelos exageros das interpretações, a protagonista se converte numa matadora impiedosa ou numa Poliana caricatural; enquanto ele se transforma num sujeito apaixonado e trabalhador, ou então um malandro aproveitador. A verdade e a verossimilhança se encontrariam numa terceira opção, pertencente a um filme inexistente.

Comparando os filmes-irmãos, visto que o lançamento simultâneo favorece este exercício, O Menino que Matou Meus Pais se revela ainda pior do que A Menina que Matou os Pais. O segmento baseado na fala da garota sustenta longamente a construção de uma menina chorosa e ingênua, acentuando o maniqueísmo. Pelo menos, na fala de Daniel, existia a leitura menos estereotipada de uma garota rica apresentando drogas ao rapaz de um bairro pobre; buscando o sexo enquanto ele se mantinha casto. Realista ou não, rompia com a vilanização das classes populares. Já o testemunho de Suzane aposta na leitura do malandro contra a pobre menina rica, produzindo cenas constrangedoras. As duas crises de nervos da protagonista - uma na casa noturna, e a outra, durante o assassinato - atingem uma comicidade involuntária, enquanto a quebra da quarta parede (“Eu só obedeci”), única vez que o recurso é empregado nos dois filmes, aproxima-se de uma falha que sobreviveu ao corte final por acidente da montagem. As cenas consecutivas com a protagonista observando a si mesma no espelho - uma delas, sob forte luz vermelho-sangue - confirmam a dificuldade em abordar a psicologia sem cair nos piores clichês da pureza e da maldade. “Mas esta é a versão dela”, “Mas esta é a versão dele”, poderiam contestar alguns. De fato, trata-se de pontos de vista exagerados para o juiz e os jurados. No entanto, posto que o filme oferece somente estas fabricações metafictícias, o espectador resta sem alternativas de leitura nas quais se basear.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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