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Sinopse

Horas após o casamento dos seus sonhos, Grace retorna à casa de campo do novo marido para passar a noite com os sogros. Mas a lua de mel não sai como esperada, ela logo se vê em uma luta sangrenta pela sobrevivência.

Crítica

Existe algo muito interessante na imagem de um vestido de noiva coberto de sangue. O vestuário branco é imaginado pela tradição enquanto símbolo de pureza e paz. Por constituir o ícone central de uma cerimônia religiosa, costuma estar arrumado, elegante. O sangue, quando participa à simbologia das núpcias, diz respeito ao sangramento da noiva que se supõe virgem. Ora, Casamento Sangrento (2019) trata de combinar as imagens opostas de requinte e felicidade com o trash e o perigo. Quando se casa com o herdeiro de um império de jogos de tabuleiro, e descobre que os parentes do marido pretendem matá-la para cumprir um macabro ritual, Grace (Samara Weaving) precisa encontrar uma maneira de sobreviver aos ataques dos parentes. A jovem de nome religioso representa literalmente o “sangue novo” na família, além de constituir a figura da intrusa, da presença potencialmente ameaçadora por disputar a fortuna familiar. A caçada noturna serve como metáfora elevada à enésima potência para o medo de se juntar a uma nova família: o receio de ser mal recebida se converte no medo de ser assassinada.

Uma premissa tão extrema só poderia funcionar com uma protagonista igualmente forte, capaz de enfrentar sozinha uma família de milionários munidos de revólveres e machados. Os diretores Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett poderiam cair na armadilha de conceber uma heroína frágil demais, transformada em vítima na mão dos carrascos, ou então convertê-la numa super-heroína de força incomum. Ora, Grace constitui uma mulher inteligente, determinada, cuja trajetória de sobrevivência soa possível dentro das alternativas de um espectador comum. A atriz jamais tem seu corpo fetichizado pela câmera, muito pelo contrário: a narrativa privilegia a astúcia da personagem à medida que o impecável vestido de noiva é rasgado, sujo, coberto de sangue e transformado em uniforme de guerra. Grace talvez seja a melhor protagonista do cinema de gênero desde Michelle em Rua Cloverfield 10 (2016), por escapar à masculinização em tentativa de transmitir respeito. Recentemente, Brit Marling escreveu um artigo pungente sobre sua recusa em interpretar a “mulher forte” do cinema de ação, compreendida como figura brutal e militarizada. Grace constitui uma destas notáveis exceções à “força feminina” tipicamente concebida pelos homens.

Além disso, a classificação etária R (proibida a menores de idade) permite que a comédia de terror brinque não apenas com a sexualidade e a violência, mas também com palavrões. É excelente se deparar com a noiva de trajes e penteado impecáveis, dentro de uma cerimônia repleta de regras, disparando palavrões e insinuações maliciosas. Samara Weaving constitui uma atriz ideal para o papel devido ao evidente prazer que demonstra em desconstruir a imagem da noiva perfeita, enquanto brinca com o estereótipo da sua beleza. Ela interpretava a namorada burra em Três Anúncios para um Crime (2017), além da jovem sedutora e assassina em A Babá (2017). Agora, destrói com gosto qualquer forma de decoro esperada de uma cerimônia de casamento. Weaving convida o espectador a se identificar com ela – tarefa fácil, por se tratar de uma mulher inocente entre uma corja de assassinos -, e eventualmente a torcer pela vingança contra os novos parentes. Enquanto os romances encaminham a trama para as reconciliações e os finais felizes, este projeto nos faz vibrar com a ruptura total, incluindo a aniquilação através de mortes brutais. O universo particularmente regrado dos casamentos, com seus códigos de etiqueta, se converte na ausência de regras por excelência, no caso, a selvageria.

Quando o “jogo” de fato toma conta da narrativa, os diretores demonstram pleno controle não apenas das imagens e do ritmo, como também do humor politicamente incorreto. A família rica é tratada como um grupo de pessoas amarguradas, burras ou, no pior dos casos, coniventes. A tentativa dos aristocratas em manter a aparência polida durante um espetáculo de mortes garante boas risadas, enquanto a aliança dos patrões com os empregados produz alguns comentários interessantes sobre a luta de classes – adivinha quem serão os primeiros a morrer? A surpresa de encontrar Andie MacDowell, modelo e atriz imortalizada por Quatro Casamentos e um Funeral (1994) dentro de um casamento oposto adiciona malícia ao discurso. Rumo ao final, Casamento Sangrento brinca de acenar ao possível final feliz entre Grace e o marido Alex (Mark O’Brien), apenas para suspender a promessa de maneira brutal. Os diretores são hábeis manipuladores dos gêneros e das expectativas que os acompanham. Eles estão cientes dos discursos machistas que correm o risco de reafirmar, e tratam de insinuar cada um destes caminhos antes de abortá-los.

O final constitui um ponto alto, ainda que controverso, no projeto. A justificativa do roteiro para a matança soa muito frágil inicialmente: os ricos alegam que, se não sacrificarem o sangue novo antes do amanhecer, “algo horrível” acontecerá a cada um deles. Ora, do que estão falando? O espectador jamais tem prova de que a maldição exista de fato, dentro de um filme que sustenta cerca de 80 minutos sem qualquer elemento fantástico. Tudo nos leva a crer que a família alimenta uma superstição absurda. Após a luta de gato e rato durante uma noite inteira (na qual a câmera explora muito bem os espaços da casa e do jardim), chega a hora de descobrir se existe, de fato, algum perigo real pesando contra os familiares. Bettinelli-Olpin e Gillett apostam numa solução exagerada, do tipo que assume o aspecto ridículo das histórias de casas mal-assombradas enquanto brinca com a possibilidade de destruição praticada por uma força do mal. O ponto de partida improvável, mas ainda verossímil, dos familiares sociopatas assume seu caráter absurdo sem meios-termos, numa vingança que lembra a versão de horror de um espetáculo de fogos de artifício. Os diretores encontram a mistura perfeita entre a fantasia e o real, entre os efeitos digitais e a impressão de naturalidade. O filme se une a Entre Facas e Segredos (2019) na lista de ótimas produções que transformam conflitos familiares comuns em jogos sangrentos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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