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Sinopse

Mariana faz parte da elite chilena. Desprezada pelo pai e pelo marido por não conseguir engravidar, ela começa a se sentir atraída por Juan, seu professor de equitação, um ex-coronel suspeito de crimes contra os direitos humanos durante a ditadura. O relacionamento dos dois entra em colapso quando Mariana descobre que o passado obscuro de Juan está relacionado a atos cometidos por pessoas da sua família.

Crítica

O comportamento de Mariana (Antonia Zegers), protagonista de Cachorros, é imprevisível. Ao invés de condicionar a trama, suas atitudes aparecem como reações orgânicas a estruturas maiores, especialmente a histórica e a social. Desde o princípio do longa dirigido por Marcela Said, sobressai a perambulação meio sem objetivo dessa filha da alta burguesia chilena. Ela vaga por espaços que lhe ajudam a preencher um vazio cotidiano tampouco afrontado, mas acessado nas entrelinhas. Há, também, o machismo prevalente nas filigranas, na forma como ela é tratada pelo marido argentino, sempre com rispidez, e pelo pai que demonstra propensão a observa-la condescendentemente, apenas por ela ser mulher. Esse traço não verbalizado, mas perfeitamente perceptível, que engrossa os contornos humanos da produção é, como os demais, deflagrado refinadamente, instilado com vagar e cuidado por uma narrativa que não oferece dados escancarados, mas os enfileira logo abaixo das aparências. O tratamento de fertilidade a aproxima violentamente dos equinos, o que alguém chega a dizer. Um homem, jocosamente, a chama de égua, sem mais aquela.

Essa sensibilidade de focar-se nas sutilezas e grosserias do machismo nosso de cada dia pode, obviamente, ser imputada ao fato de Cachorros ter uma mulher como roteirista e diretora. A realizadora não abre espaços para julgamentos morais dos atos de Mariana. Nesse sentido, a inclinação da personagem ao flerte para conseguir o desejado não é menos instrumental que as aulas de equitação e as conversas banais com conhecidos nas propriedades da família rica. São eventos que não determinam alterações num painel já consolidado, especialmente, pela força masculina que, inclusive, cometeu barbaridades durante a ditadura militar à qual o Chile foi submetido, como boa parte dos países latino-americanos, nos anos 60/70. Todavia, a herdeira demonstra confusão quando frente a esse passado que retorna para cobrar uma conta recheada de atos vis. Enredada pelo coronel Juan (Alfredo Castro), que lhe ensina a cavalgar devidamente, a tirando do seu meio, logo acompanha de perto a inquietação que decorre de uma acusação de violação dos direitos humanos. Como parte dos milicos da época da ditadura, ele pode estar envolvido com torturas e mortes.

Cachorros utiliza sua protagonista como um elo frágil entre o presente apático e o outrora sombrio/sangrento. Embora a realizadora incorra em indefinições nem sempre produtivas do ponto de vista dramatúrgico, a forma como as ocorrências são desveladas demonstra a vontade de fugir ao óbvio, de não apresentar uma trajetória banal de transformação. A fascinação de Mariana pelo homem que provavelmente ajudou a infligir dor a pessoas de esquerda e a sumir com os cadáveres dos que não aguentaram a barbaridade chancelada pelo governo passa ocasionalmente pela questão política, mas não é atrelada cartesianamente a ela. Neste enredo, os atos da figura principal importam à medida que expõem o ardil de seu estrato social nativo. O pai multimilionário, acusado de colaboracionismo, representa bem uma parcela cínica do empresariado que patrocinou e/ou facilitou a ação dos militares. A diretora, entretanto, tira o pé do acelerador em instantes potencialmente expressivos, sobretudo no que tange à visão amargurada da realidade em que as chagas são escondidas.

Destaca-se em Cachorros, além das diretrizes que o afastam do lugar-comum, o desempenho do elenco, especialmente de Alfredo Castro, que compõe um sujeito permeável somente aos encantos de Mariana, mas escorregadio quanto à violência a ele imputada, e Antonia Zegers, intérprete da figura cujas vivências nos conduzem num meio silenciado e avesso à exumação do Chile marcado profundamente. Marcela Said não barganha com o espectador a fim de beneficiar sua ligação com essa mulher claudicante, não pautada pelas circunstâncias sociais exatamente por ser fruto de um meio elitista que frequentemente utiliza a alienação como ferramenta de perpetuação de poder. Assim sendo, Mariana, a despeito de sua posição financeira privilegiada, também pode ser considerada uma vítima desse círculo vicioso, algo expressado gradualmente, com contundência constante. Mesmo que careça de um discurso político mais frontal, pois em alguns instantes a nebulosidade causa indeterminação, a prevalência de detalhes substanciais garante a potência do filme

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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