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Sinopse

Sara leva um relacionamento estável e feliz com Jean, seu parceiro há mais de dez anos. Certo dia, ela cruza pelas ruas com François, seu e-marido, e antigo amigo de Jean. O encontro desperta sentimentos escondidos na jornalista, que passa a viver uma crise no casamento. Quando François reaparece para Jean, convidando-o a trabalharem juntos, Sara precisa fazer uma escolha.

Crítica

Em Com Amor e Fúria (2021), a diretora Claire Denis parte do paraíso ao inferno. O filme se inicia com uma cena idílica, de felicidade quase publicitária: Sara (Juliette Binoche) e Jean (Vincent Lindon) se divertem na praia, entre beijos e sorrisos. Eles mal conseguem dar dois passos antes de se acariciarem de novo e fazerem sexo na volta para a casa. Os dois trocam confidências e juras de eternidade — sinal de que a aventura se destruirá, afinal, casais idealizados não fornecem conflitos suficientes para um longa-metragem. A semente da discórdia se encontra em François (Grégoire Colin), antigo companheiro de Sara, e ex-amigo de Jean. O homem reaparece por acaso, testando os limites do afeto recalcado em ambos: o sujeito logo passa à sedução com a ex-namorada, e faz uma proposta de emprego ao homem desempregado, recém-saído da prisão. François constitui a resposta a todos os problemas, e também a origem de novas crises. É interessante que o texto construa nosso imaginário acerca deste homem somente em terceira pessoa, pela perspectiva do casal, durante dois terços da narrativa. O furor provocado na esposa, beirando o ataque de pânico, e a intimidade repentina despertada no esposo (“Foi muito difícil viver sem mim?”, ele pergunta) ilustram a importância que o sujeito desempenhou para a dupla. De certo modo, os dois protagonistas são apaixonados pelo “belo forasteiro”. 

Segue-se então uma ciranda de desafetos, com direito a crises de ciúme, votos renovados de confiança, sexo violento em forma de expurgo. A cineasta deposita toda a sua confiança no trio de atores que ocupa a integralidade das cenas e faz mover a narrativa através de diálogos ininterruptos. O roteiro até se lembra de propor tramas paralelas, sugerindo uma vida social fora do imbróglio sentimental. O principal exemplo deste esforço se encontra em Marcus (Issa Perica), adolescente criado pela avó enquanto o pai cumpria a pena de prisão. Nota-se a tentativa discreta de inserir um debate identitário versando sobre o racismo, porém o filme se livra de Marcus e do núcleo familiar sempre que pode para retornar ao embate no apartamento. Apesar de ter espaço confortável para filmar o casal, o diretor de fotografia Éric Gautier aposta em close-ups e planos de detalhe incrivelmente próximos, com apenas parte do rosto ocupando a tela gigantesca do cinema. A câmera busca devorar estes dois, penetrar suas cabeças e corpos, o que justifica a escolha de desfocar o mundo ao redor e reduzir os coadjuvantes a meros pontos de apoio aos protagonistas (caso de Mati Diop e Lola Créton). Existem amantes ajoelhados pedindo desculpas, gritos de “Meu amor”, sussurros de “François, François!”, e diálogos explicativos, a exemplo de “Lá vamos nós de novo: o amor, o medo, as noites sem dormir. O telefone ao pé da cama. Me sentir excitada de novo”, num arroubo de lucidez impressionante por parte da mulher atordoada.

Denis mira numa forma de drama clássico, preenchido apenas pelos dilemas de amar e ser amado, pela crença na paixão infinita e o medo de se descobrir trocado por outro. Este cinema francês de construção antiquada se cola à estética mais contemporânea possível: a filmagem digital, com câmeras de baixa qualidade, em orçamento reduzido. As andanças pelo metrô e a visita ao estádio de rúgbi possuem a aparência de uma gravação clandestina com telefone celular ou pequena câmera portátil; ao passo que a iluminação desfavorável do apartamento parisiense mantém as zonas de sombra e as cores acinzentadas. Além disso, o projeto foi desenvolvido durante a pandemia de Covid-19, incorporando o uso de máscaras ao cotidiano. Imagina-se, portanto, que o formato do huis clos e do melodrama de casal tenha sido a solução encontrada pelos criadores para oferecerem uma filmagem segura e manterem o fluxo criativo durante um período de dificuldade. Avec Amour et Acharnement, no original, carrega a aparência de uma “obra de pandemia”, ou seja, um exercício de pequenas proporções praticado pela diretora com dois de seus amigos e colaboradores mais frequentes: Vincent Lindon, com quem filmou Vendredi Soir (2002) e Bastardos (2013), e Juliette Binoche, que estrelou Deixe a Luz do Sol Entrar (2017) e High Life: Uma Nova Vida (2018). De certa maneira, busca-se compensar a ausência de recursos com os rostos de atores famosos e uma quantidade impensável de trilha sonora orquestrada. O filme disfarça seus pequenos ruídos de montagem e diálogos (alguns, de aparência improvisada) aumentando o volume das melodias.

Ressalvas à parte, em seu escopo limitado, o drama oferece um resultado competente, embora pouco memorável. O exagero sentimental chega a provocar risos em alguns instantes (o problema com o celular, a provocação infantil com François no motel), porém interessa quando Denis decide filmar o pavor dos sentimentos na forma de um suspense. Cada aparição do ex-amante é acompanhada por uma trilha apavorante, digna de filmes de terror. O olhar atônito de Sara diante deste homem, ou as noites misteriosas passadas por Jean com o amigo despertam a impressão de um sujeito tão fascinante quanto perigoso. A diretora testa a capacidade de seu texto, seu elenco e sua mise en scène em representar de maneira verossímil a paixão arrebatadora no meio dos cínicos anos 2020. O resultado nunca passa muito longe do ridículo, porém se sustenta na crença de que, em tempos de dificuldade social e financeira, o cinema pode se abrigar no tema universal do amor romântico. Denis demonstra fé no poder da ficção enquanto forma de superar obstáculos, ou pelo menos disfarçá-los. No final, o longa-metragem constitui um sintoma dos contraditórios anos de Covid-19 — momento em que o vírus parece ser o único assunto possível, ao mesmo tempo em que representa o tópico sobre o qual ninguém aguenta escutar. Mas não pense nisso, olhe para cá, aqui está Juliette Binoche dividida por dois homens, entregue, ambígua, contraditória. Será que a dupla continuará junta? Ela renunciaria a tudo para se entregar ao companheiro de antigamente? Estão todos condenados à infelicidade? Contra as nossas dores, oferece-se o expurgo das belas e fictícias dores alheias.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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