Crítica


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Sinopse

Na periferia de São Luís, no Maranhão, a filha de um humilde tocador de pandeiro decide participar de manifestações políticas que estão ocorrendo no centro da cidade. Enquanto isso, um amigo próximo dos dois começa a ter pensamentos sombrios e obscuros a respeito de ambos logo após descobrir sobre a gravidez de sua própria esposa.

Crítica

Em seu novo trabalho, o diretor Frederico Machado segue trilhando um caminho de experimentalismo minimalista, afeito ao surrealismo – transitando constantemente entre o fantástico e o concreto – e que flerta abertamente com o cinema de terror no modo como suas narrativas configuram uma atmosfera de pesadelo que, no caso de Boi de Lágrimas, tem origem no cenário de caos político que assola o Brasil. Para construir esse universo, Machado recorre novamente a elementos vistos em suas obras anteriores – Lamparina da Aurora (2017), O Signo das Tetas (2015) e O Exercício do Caos (2013) –, como a ambientação no estado do Maranhão, o número reduzido de personagens, todos sem nome, e, talvez o mais significativo destes, a quase ausência de diálogos. Basicamente, todas as falas aqui vêm do extracampo, como dos sons dos noticiários da TV que abordam as manifestações populares no Brasil ou dos discursos políticos variados que compõem o prólogo do filme.

Entre essas falas, está um trecho do emblemático discurso de Gandhi no qual ele trata de um “poder misterioso e indefinível que permeia tudo” e que “transcende os sentidos”. É justamente dos sentidos, da criação de uma experiência essencialmente sensorial, que nasce o cinema de Machado, composto de fragmentos que não constituem obrigatoriamente uma narrativa linear ou servem para estabelecer uma dinâmica clássica e direta entre personagens, mas sim para provocar sensações e conduzir essas figuras a diferentes estados emocionais, deixando transparecer seus próprios sentimentos. Assim, temos um núcleo de personagens formado por um tocador de pandeiro dos cortejos do Bumba Meu Boi maranhense, sua jovem filha, que se envolve nas manifestações políticas locais ao lado do namorado, e um terceiro elemento, um amigo da família. Esse último sem dúvidas o mais ambíguo, vivendo no limite da loucura, dividido entre as fantasias envolvendo a filha do amigo e uma angústia dilacerante relacionada à gravidez de sua esposa.

Machado coloca esses indivíduos basicamente mudos, que comunicam suas dores e alegrias através da fisicalidade, das expressões e marcas de seus rostos e corpos, em meio a um intenso fluxo de signos e alegorias, tendo como guia o componente ritualístico do Bumba Meu Boi – que narra a morte e ressurreição do animal em questão. Essa jornada de martírio representa em parte a opressão imposta pelo poder político sobre a massa humilde, em particular no Maranhão. Uma massa simbolizada por Machado através das formigas – os seres aparentemente frágeis, que realizam o trabalho árduo, incessante e alienante, podendo ser facilmente esmagados a qualquer instante – que surgem nas imagens que ilustram a sequência inicial de créditos.

No campo formal, o cineasta se vale da variação de registros – diferentes janelas, passagens coloridas e em preto e branco, filtros e efeitos de granulação, além da inserção de imagens de filmes de Sergei Eisenstein que estabelecem um paralelo com os movimentos populares – para construir uma atmosfera onírica que reflete o desarranjo emocional e mental dos personagens. Algo acentuado pelo ótimo trabalho de mixagem de som e pela trilha sonora grave e tensa. Dessa forma, Machado sustenta um senso permanente de incômodo, fazendo com que seus protagonistas sejam levados ao extremo, ao ponto de ebulição. Uma explosão que se manifesta de formas diferentes, como no gozo do sexo para a filha do tocador de pandeiro ou na violência do delírio do amigo da família. Nesta, o flerte com o terror psicológico se intensifica, com o temor da paternidade e o desconsolo de trazer um filho a um mundo tão caótico transformando o momento do parto em uma cena que soa quase como um exorcismo, conectada, via elementos sonoros, à ressurreição do Bumba meu Boi.

Por fim, Boi de Lágrimas, traz a explosão, o escape, que Machado parece almejar: através da expressão artística. É com o tocador de pandeiro empunhando seu instrumento, com um coração pulsante marcado no couro, que o filme se encerra. Numa catarse musical – elemento que já se manifestara de modo mais sutil, na única sequência em que se dá voz ao personagem, entoando a canção-título – na qual o diretor parece reafirmar a importância da arte como arma de luta política, de uma resistência poética. Um pensamento de inegável força, assim como o impacto plástico de boa parte das imagens, mas que talvez não consiga ser sustentada em sua plenitude em meio à profusão heterogênea de simbolismos, nem sempre controlada, que domina a enxuta duração da obra.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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