Crítica
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Sinopse
O corpo político da cantora transexual negra Linn da Quebrada é a força motriz desse documentário que a captura em sua esfera pública e privada, ambas marcadas não só por sua presença de palco inusitada, mas também por sua incessante luta pela desconstrução de estereótipos de gênero, classe e raça.
Crítica
O que é Bixa Travesty? Segundo o dicionário, bixa é “designação comum às plantas da família das bixáceas, conhecidas também como urucum”. O sentido popular, no entanto, é distinto. Bixa, ou bicha, é o homossexual – gay, viado – masculino. Homem que transa, que curte, que se apaixona, que faz sexo com outros homens. E travesty? Bom, o travesti que conhecemos é “o homossexual que se veste e se conduz como se fosse do sexo oposto”. O homem que se veste de mulher, mas não por uma fantasia, mas por assim se sentir melhor. No entanto, se com “y” no final, trata-se de uma expressão em inglês que pode ser traduzida para o português como “farsa”. Aliás, exatamente o que não encontramos em Bixa Travesty, documentário através do qual os diretores Kiko Goifman e Claudia Priscilla se debruçam sobre a figura de Linn da Quebrada e suas mais próximas, como Jup do Bairro e Liniker. Homens – ou mulheres, dependendo do dia, da vontade, da situação – que são tudo isso (homens, mulheres, bichas, travestis...) e mais aquilo que não se exige definição, fazendo uso de tudo – e do nada – para criar. E assim, serem artistas na plenitude dos seus seres.
A estrutura é quase como a de um talk show radiofônico, um programa de entrevistas em que as apresentadoras – Linn e Jup – não só permitem esse mergulho em suas personalidades, como também se propõem a desdobrar os mistérios, os prazeres e as amarguras de serem quem são. Não são homens, nem mulheres. Mas são, sim, homens e mulheres. Cabelo comprido e vestido, unhas bem feitas e muita maquiagem, pênis que escondem ou que fica bem à mostra. Se vestem como guerreiras prontas para a batalha, amazonas frente ao combate diário que permite suas sobrevivências. Da mesma forma, exibem seus corpos até nos mais íntimos detalhes, sem nenhum tipo de vergonha ou pudor. Linn, principalmente, assume esse papel de mestre de cerimônias – tal qual desempenha nos bailes funks em que se apresenta – com graça e desenvoltura, garra e entrega. Ali está ela por inteiro, mas muito se engana quem pensa que, enfim, poderá conhecê-la.
Afinal, quem são estas personagens? O segredo faz parte de suas composições, e Goifman e Priscilla não querem encerrar o debate – muito pelo contrário, aliás. A preocupação dos realizadores é abrir espaço, possibilitar esse contato e oferecer caminho para que tal troca seja possível. Não por acaso, Linn toma o filme para si, a ponto de chegar a assinar ao lado dos diretores a autoria do roteiro. Bixa Travesty é Linn da Quebrada. Linn da Quebrada – que já foi Lino, Lara e muitas e muitos outros – é Bixa Travesty. Jup, Liniker, a mãe, amigos, o namorado: todos acabam servindo como espelhos, através dos quais a protagonista reflete, com maior ou menor força, a sua luz. “Eu me amo”, diz. “Há dois tipos de homens: os que me desejam e aqueles que ainda não me conhecem”, afirma mais adiante. É preciso, como se verifica, ser dona de uma autoestima muito boa para lidar com tudo que a vida lhe separou e continuar de cabeça erguida.
Após o problemático Olhe Pra Mim de Novo (2012), sobre uma mulher que passa por uma cirurgia de redesignação sexual e se torna um homem machista, Goifman e Priscilla voltam a abordar a multiplicidade da sexualidade humana, agora, no entanto, através de uma figura muito mais rica e emblemática. Linn da Quebrada dá a cara a tapa, mas não está aqui a passeio, e muito menos disposta a levar desaforo para casa. Em sintonia com discursos tão em voga como o empoderamento feminino, o fim da homofobia e do racismo, ela e suas iguais fazem por onde para que suas identidades possam abraçar essas definições – e mais algumas, se for o caso. Assim, conseguem provocar a reflexão, estimular o debate e propor o confronto contra ideias pré-estabelecidas, conceitos ultrapassados e contextos que não mais se encaixam nos dias de hoje. Os discursos perderam seus prazos de validade, e na falta de novos, Bixa Travesty está aqui para isso: derrubar e reconstruir.
Carismática e envolvente, Linn da Quebrada é uma escolha acertada para a condução do filme. Nos palcos ou em casa, no banho com a mãe ou sozinha, cantando em plenos pulmões ou no hospital, se recuperando de um câncer no testículo, ela nunca deixa de ser menos do que autêntica. Por outro lado, Bixa Travesty está inebriado por sua personalidade. Assim, se torna tanto inédito aos olhos dos desavisados, como uma jornada não mais do que curiosa frente àqueles já iniciados neste mundo de mudanças, transformações e constantes questionamentos. A luva de aspecto metálico pode ter servido a Ney Matogrosso na época dos Secos e Molhados como um adereço a mais. Hoje, é resquício de um robocop gay, mais uma peça de afirmação, poder e força, que tanto previne como seduz. Um amuleto, portanto. E é neste jogo, que atrai e repele, que afasta e aproxima, que somos convidados a vislumbrar – sem decifrar, no entanto – o âmago de uma artista vinte e quatro horas por dia, que precisou se recriar para poder, enfim, ser quem sempre foi.
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