Crítica


6

Leitores


3 votos 8.6

Onde Assistir

Sinopse

Pelo menos desde 2016, os mandatários da Chechênia perseguem os membros da comunidade LGBTQIA+. Sem apoio, condenados à clandestinidade, os perseguidos são instados a tomar suas próprias atitudes.

Crítica

No documentário Welcome to Chechnya, o diretor David France possui a consciência de efetuar uma reportagem arriscada. Desde a primeira imagem, o filme se apoia nas ferramentas da trama policial, sublinhando o risco de morte tanto para os personagens quanto para a equipe. Destaca-se o aspecto da coragem, e também do martírio pela causa: tanto France quanto os ativistas LGBTQIA+ da Chechênia, sobretudo aqueles que expõem seus rostos, o fazem com a consciência de que podem ser perseguidos, presos e torturados. “Se não te matam, já é uma vitória”, declara um dos protagonistas. Para atestar a seriedade dos temas abordados, as primeiras cenas expõem insultos homofóbicos, ameaças de sequestros e de “estupro corretivo” contra lésbicas. Entre as inúmeras maneiras possíveis de abordar um tema tão urgente, o cineasta opta pelas ferramentas mais chamativas do cinema expositivo. Adota-se a postura do justiceiro encarregado de gritar aos quatro cantos do mundo, em festivais de cinema e nos grandes canais de televisão, a respeito das violações de direitos humanos cometidas na região majoritariamente muçulmana da Rússia.

No que diz respeito à estética, o projeto privilegia estratégias de ficcionalização. Durante a fuga de homens gays e mulheres lésbicas do território russo, filmadas ao vivo com câmeras escondidas, a montagem se torna fragmentada, enquanto a trilha sonora aposta numa orquestração tensa, digna da franquia Jason Bourne. Quando Maxim Lapunov, o primeiro homem a processar publicamente o Estado pela prática de tortura LGBTfóbica, reencontra o namorado no aeroporto, a câmera se aproxima ao máximo dos dois para captar a emoção. A imagem circula os rostos e praticamente mergulha no abraço apertado. Quando o garoto de um abrigo secreto para gays corta os pulsos, a câmera acompanha em plano sequência a descoberta da vítima, oferecendo um zoom in nos cortes dos pulsos. France deseja “fazer verdade”, como se diria nos estudos de teoria da imagem. Ele pretende provar que aquela situação é verdadeira e gravíssima, mesmo que isso implique em superexpor pessoas em situação fragilizada, ou escancarar as dores delas em prol de um bem maior. Em outras palavras, acredita-se que a causa supera o indivíduo, razão pela qual as filmagens sobre a vida de Anya, uma garota escondida da família por ser lésbica, poderiam colocá-la em risco. Há questões éticas graves a considerar neste caso.

O questionamento mais importante em termos estéticos e discursivos diz respeito à modificação dos rostos. Desde o princípio, letreiros afirmam que os rostos de pessoas em situação de perigo serão alterados para preservar a identidade – uma iniciativa louvável. No entanto, ao invés dos tradicionais desfoques telejornalísticos, o cineasta opta por um estranho filtro digital que modifica os traços do indivíduo. O espectador se depara com pessoas de aparência robótica, como um avatar da Internet, cujas linhas de expressão estão quase inteiramente nítidas. Ora, essas pessoas de traços desenhados, ou digitalmente alterados, criam uma estranheza palpável em contraste com o humanismo do tempo. Por que não assumir o desfoque enquanto posicionamento político, ao invés de oferecer aos personagens “novos rostos” virtuais? A conotação de monstruosidade e falsidade decorrente destas intervenções não beneficia o caso dos homens e mulheres retratados. Ainda que estejam a princípio protegidos, eles chamam tanta atenção pelo recurso em pós-produção que terminam por enfraquecer as histórias por trás das máscaras. Quando Maxim revela sua identidade, o documentário efetua uma “diluição” progressiva do filtro até revelar o rosto real, como num filme de ficção científica. A paixão de France pelo artifício não favorece a escolha bruta do cinema-reportagem.

O estilo de urgência ao menos proporciona um apelo claro à comunidade internacional, nomeando os responsáveis. Acusa-se Vladimir Putin e o dirigente local Ramzan Kadyrov pela conivência e hipocrisia quanto aos ataques; e Donald Trump por fechar os olhos aos pedidos de asilo. Em contrapartida, o Canadá é elogiado por sua generosidade com as vítimas. O cenário sociopolítico adquire uma explicação clara, ao limite do didatismo, com a ajuda de mapas digitais e depoimentos sucintos à câmera. Para o bem ou para o mal, o estilo está impregnado de exemplaridade (os personagens só interessam ao filme na medida em que são atacados, sem poderem expor seus sonhos, desejos, amores etc.), o que resulta numa experiência ágil e suficientemente acessível a todos os públicos. Na ânsia de conquistar a identificação do público (como não torcer por alvos de crimes tão bárbaros?), o filme apela para vídeos explícitos de estupro e tortura pelas ruas da cidade. Estes momentos difíceis de assistir constituem a pedra final do convencimento, como a imagem nunca pudesse mentir, nem ser manipulada. Ora, assim como Putin e Kadyrov mascaram os fatos a seu favor, France também manipula a imagem de forma a tornar seu discurso mais potente, como convém a qualquer discurso cinematográfico. O diretor acredita estar resgatando uma verdade objetiva e incontestável, quando de fato participa de uma disputa de narrativas.

É curioso que um documentário sobre pessoas anônimas, numa região de pouca repercussão internacional, possua tamanhas semelhanças com o cinema de ação hollywoodiano. Diversas passagens de Welcome to Chechnya remetem a Argo (2012) e outros filmes sobre extrações improváveis de vítimas dos Estados opressores. O cineasta dispõe de uma produção competente o suficiente para erguer um apelo convincente, no entanto, transforma suas histórias reais em espetáculo do sofrimento. Neste caso, a política passa tanto por negociações burocráticas e questões de direito civil quanto pela necessidade de expor lágrimas e corpos mutilados. Se France estivesse alertando sobre os perigos do cigarro, por exemplo, ele utilizaria tanto argumentos científicos quanto fotos de pulmões necrosados para sustentar a sua causa. O resultado possui o mérito da facilidade, tornando-se uma ferramenta de comunicação acessível. Trata-se, em última instância, de um cinema útil, movido pelo desejo de sensibilização. Nestes casos, qualquer ferramenta estética é considerada válida contanto que reforce o apelo. A linguagem cinematográfica se converte em retórica: ela vale pelo poder de choque. Felizmente, para o diretor, o impacto está garantido.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *