Crítica
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Sinopse
Buddy mora na Irlanda no Norte no fim dos anos 1960. Em meio a uma vida repleta de afeto familiar e de vizinhos amorosos, ele será apresentado aos horrores do preconceito e às dificuldades impostas à classe trabalhadora do país.
Crítica
O mundo do pequeno Buddy (Jude Hill) está prestes a ser transformado radicalmente. E essa leitura é estabelecida já nos primeiros momentos de Belfast. O cineasta shakespeariano Kenneth Branagh encena de modo simples e significativo esse rompimento com o universo de fantasias da criança. O menino chamado pela mãe para dentro de casa, indagado no meio do caminho sobre suas lutas imaginárias contra dragões, se depara com a violência crua do bicho homem que o torna verdadeiramente vulnerável. A câmera faz um movimento de 360 graus em torno do protagonista para justamente mostrar que algo está começando a mudar a partir daquele instante. E isso é simbolizado diretamente pelo escudo: antes, usado contra perigos fictícios; depois, protetor contra as ameaças reais. Aliás, Branagh demonstra um grande poder de concisão nessa sequência. Além do limiar pessoal, ele sugere simultaneamente a morte de um estilo de vida na Irlanda do Norte. Em vez de colocar palavras elogiosas nas bocas dos personagens sobre o sentido comunitário do lugar, o realizador faz algo bem mais singelo e bonito, cujo efeito é ao mesmo tempo prático e emocional: mostra o chamado da mãe sendo reverberado por amigos e vizinhos, com isso gerando a ideia de unidade que está com os seus dias contados. A história se passa no fim dos anos 1960, quando um levante contra os católicos complicou tudo.
O que temos em Belfast é uma crônica familiar transbordante de afetuosidade, mesmo num clima de crescente intolerância. Os moradores locais precisam conviver com novos protocolos, vide as barricadas que criam empecilhos aos que desejam entrar e/ou sair da rua em que Buddy mora. Indubitavelmente, Kenneth Branagh faz aqui um filme político, no sentido estrito, porque as aventuras e desventuras do protagonista mirim são atravessadas pelo conflito religioso entre católicos e protestantes que carrega outros componentes a reboque. Seguindo uma tendência recorrente do cinema, a de apresentar guerras e/ou outras batalhas por meio da perspectiva infantil, o cineasta combina sensivelmente a observação da realidade que será severamente alterada pela agressividade e as demandas comuns do menino em crescimento. Assim, as dinâmicas tensas entre os pais que lidam com a austeridade dos preconceituosos são entremeadas pelas conversas amenas dos avós vividos por Judi Dench e Ciarán Hinds. Há ainda o entusiasmo do primeiro amor. O protagonista está vivendo momentos decisivos para o começo de seu processo de amadurecimento, pois além da violência ele logo será levado a também lidar com as consequências da morte de um ente querido. Ao sair da infância e tatear aspectos do seu desenvolvimento, Buddy é intimado a abandonar a inocência, mas sem perder a ternura.
O tecido narrativo de Belfast é costurado por delicadezas e carinhos. Isso fica ainda mais claro quando o roteiro privilegia o caráter lúdico para aludir ao imaginário do menino. Buddy admira os avós que lhe contam histórias cotidianas com pequenos traços de doçura e fábula, bem como fica vidrado diante dos filmes que movimentam as suas fantasias. E Kenneth Branagh distribui bem esses elementos simbólicos ao longo do filme. Por exemplo, promove uma sincronicidade entre a solidão do protagonista de Matar ou Morrer (1952) – um dos faroestes assistidos por Buddy – e o heroísmo do pai num instante específico em que é necessário tomar uma atitude drástica para proteger a família. Ainda no quesito referências, não é por acaso que o jovem Buddy assiste a O Homem que Matou o Facínora (1962) com tanta devoção. A partir da utilização de um trecho da obra-prima de John Ford, Branagh constrói outra metáfora de importância fundamental. Sim, pois o faroeste estrelado por James Stewart e John Wayne igualmente fala de um mundo prestes a ser transformado, no caso o Velho Oeste que não mais será governado pela força e que, em breve, passará a ser orientado por leis e diálogos. Além disso, o cineasta britânico aproveita dali a lógica do antagonismo existente entre o pai de Buddy e o vizinho em momentos pontuais. A comunicação com arte também adquire contornos de escapismo (quando os pais de Buddy flertam enquanto um deles canta) e epifania (na bela tomada da família no cinema).
Em alguns sentidos, podemos estabelecer paralelos entre Belfast e Roma (2018). Isso porque, além de ambos os longas-metragens serem lindamente fotografados em preto e branco, ambos dizem respeito a episódios e personagens que marcaram a vida infantil dos seus diretores, num período aproximado e cheio de tensões sociais que afetam os personagens. No entanto, embora tanto Kenneth Branagh quando Alfonso Cuarón utilizem as características do preto e branco para evocar o passado, eles possuem abordagens narrativas bem diferentes. O mexicano confere mais importância aos coadjuvantes de sua vida factual, efetivamente os transformando em personagens principais. Já o britânico opta pelo protagonismo do seu alterego, ou seja, mantém o ponto de vista infantil como o norteador ao espectador. Além da história ser bem equilibrada e contada com uma singeleza cativante, há no elenco desempenhos excepcionais, vide Judi Dench e Ciarán Hinds como os avós do tipo “os opostos se atraem”, Jamie Dornan e Caitriona Balfe interpretando muito bem as nuances dos pais de Buddy, e Jude Hill vivendo o pequeno e encantador protagonista. Quanto à direção, o geralmente grandiloquente e pomposo Kenneth Branagh aqui prefere os tons menores, a poesia e a virtude infantil para homenagear os homens e as mulheres que fazem parte da classe trabalhadora da Grã-Bretanha. Sim, pois ele ainda encontra espaço para sinalizar as dificuldades dos operários de seu país, numa ponte entre passado e presente.
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