Crítica


4

Leitores


4 votos 7

Onde Assistir

Sinopse

Marcelo, um escritor, e Beatriz, uma advogada, se mudam para Lisboa. A moça logo encontra um emprego em uma empresa local, mas seu marido não tem a mesma sorte e encontra dificuldades para começar a escrever seu novo romance. Quando finalmente decide como tema o ciúme, tem como inspiração a própria esposa. Para que o livro seja uma trama de sucesso, Beatriz resolve ajudá-lo: seu objetivo é construir uma personagem que alimente a criatividade dele, só que vai longe demais, vivendo situações intensas e comprometedoras em uma vida dupla sem controle.

Crítica

Há questões complexas em debate no decurso de Beatriz. O escritor que não consegue criar sem base na realidade; a cônjuge permissiva quanto a ser mero substrato da ficção; o desejo como área praticamente insondável. Todavia, há forças retendo os potenciais enormes, especificamente oriundas da reduzida espessura dos protagonistas, eles que podem ser descritos em poucas palavras sem grandes perdas à compreensão de suas completudes. Marcelo (Sérgio Guizé) é um autor mesquinho que extrai criatividade do abismo, arrastando para lá até quem ama. Beatriz (Marjorie Estiano), sua esposa, aceita fazer parte de um jogo ambíguo a fim de preservar a relação com traços patológicos. A despeito das ressalvas no que tange ao novo livro do amado e à sua desistência do emprego fixo para embarcar, sem garantias, na aventura da construção literária, a mulher se deixa tragar ao redemoinho desenhado de modo oscilante pelo cineasta Alberto Graça.

Toda a primeira parte, fundamentada nos jogos eróticos que esse casal desenvolve para, primeiro, manter acesa a chama do casamento, e, segundo, servir de motriz aos contos eróticos publicados numa revista que os ajudam a sobreviver em Lisboa, é bem articulada pelo realizador. Ele aposta no desejo como ignição da cumplicidade, ou seja, de algo benéfico a ambos e de comum acordo. Instigado por um editor espanhol, Marcelo decide jogar tudo para o alto e mergulhar numa jornada autocentrada, mas que, paradoxalmente, precisa do sacrifício cotidiano da amada para funcionar adequadamente. O sujeito escreve sobre uma mulher e sua lascívia, mencionando escapadas extraconjugais que Beatriz topa vivenciar literalmente, num processo gradativamente parecido com autodestruição. Desse ponto em diante, o filme se perde frequentemente em banalidades, apresentando personagens beirando o dispensável, como a espanhola que surge apenas para ser um par de ouvidos atentos ao autor. A interpretação fria de Guizé esvazia a paixão de Marcelo de veracidade.

Beatriz utiliza o teatro como dispositivo narrativo instigante um par de vezes. Concomitante à escritura do livro, há a encenação minimalista da peça baseada nos capítulos já enviados ao editor, o que cria uma camada fértil à demonstração dos conflitos dos personagens principais. Essa mimese gera uma bem-vinda demão lírica responsável por, em certos instantes, aliviar o endurecimento da narrativa que se vale predominantemente do choque, nem sempre eficaz, de fragmentos curtos, o que prejudica a fluidez do todo. Alberto Graça, crescentemente, deixa os protagonistas caírem numa vala comum, sobretudo na fase em que mais seria preciso imergir radicalmente nas suas idiossincrasias. É tão sintomático que a atriz responsável por dar vida nos palcos à equivalente ficcional de Beatriz se rebele contra a subserviência da “personagem” quanto o fato de um homem, no caso o encenador, rechaçar isso, oferecendo uma explicação forçada e que não condiz com os fatos desvelados no enredo. Apesar disso, os esforços de Marjorie Estiano garantem passagens de intensidade.

Beatriz é deflagrada como submissa aos desígnios do marido. A não ser na sequência final, quando há uma bem-vinda rebelião contra a opressão do homem aparentemente em paz com o trajeto pedregoso, no qual o método expõe seu egoísmo aviltante, os desejos femininos não se emancipam das vontades masculinas, então prevalentes e imperativas. O aborto, realizado para que nada atrapalhe o processo com ares de precipício, a sobressalência da metodologia sobre o tesão nas escapadelas pelas ruas de Lisboa, a negação persistente da necessidade de libertar-se, tudo isso evidencia o servilismo outrora denunciado pela intérprete e amainado pelo diretor. Alberto Graça deixa que Marcelo à mercê de julgamentos, não permitindo que ele seja ao menos um pouco simpático aos olhos do espectador. Já a Beatriz é conferido mais espaço, ainda que esse se reduza bastante sempre que as coisas ameaçam se tornar complexas demais. Uma pena que o grande potencial e algumas das boas ideias, como a convivência harmoniosa entre as línguas latinas, não sejam suficientes.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *