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Sinopse

Três mulheres temporalmente separadas, mas que enfrentam problemas bastante semelhantes. No início do século 20, Virginia Woolf luta para terminar seu romance Mrs. Dalloway, este que afeta profundamente uma dona de casa nos anos 1950. Nos dias atuais, uma mulher parece viver os dilemas do livro.

Crítica

Recebido com entusiasmo por cinéfilos e admiradores por onde foi exibido, o drama As Horas, de Stephen Daldry, certamente não é uma das obras mais fáceis de ser digerida. Ainda assim, recebeu nove indicações ao Oscar, inclusive a de Melhor Filme, além de ter ganho o Globo de Ouro e diversas outras premiações. Afinal, trata-se de uma verdadeira obra de arte, dedicado àqueles interessados em apreciar um trabalho digno de artistas. Dotado de muita sensibilidade e talento, é uma legítima experiência cinematográfica, que deve ser absorvida com deleite e inteligência.

O sucesso de As Horas começou com o livro homônimo, escrito em 1998 pelo norte-americano Michael Cunningham. No mesmo ano foi premiado com o Pulitzer, a maior premiação da literatura inglesa. Conta a história de um único dia na vida de três mulheres, cada uma numa época diferente. O único ponto em comum entre elas é o livro Sra. Dalloway. A primeira delas, nos anos 1920, é a autora Virginia Woolf, que se encontra no processo de escrita desse que é um dos seus textos mais famosos. Somente esta personagem é real; as demais são ficcionais. A segunda, uma dona de casa nos anos 1950, é Laura Brown, que está lendo o livro em questão e se identificando com muito do que está ali escrito. E por fim a última delas, em 2001, é Clarissa Vaughn, uma Sra. Dalloway moderna (que é de fato seu apelido entre amigos, e não por acaso), está vivendo eventos similares aos do livro. Ou seja, uma escreve, a outra lê e a terceira vive o livro em questão. Um trabalho memorável de recriação em cima de uma obra já consagrada, um feito devidamente reconhecido e reverenciado.

Adorado por muitos, o livro As Horas chegou a ser considerado “infilmável”, devido a sua estrutura fragmentada. Mas, assim como outros similares que padeciam da mesma sina (como O Paciente Inglês, 1996, e A Insustentável Leveza do Ser, 1988), recebeu uma adaptação bastante precisa, mérito de David Hare, indicado ao Oscar por este trabalho e também por O Leitor (2009). O resultado transmite com fidelidade impressionante os mesmos sentimentos e intenções contidos no material literário, mas sem abusar da forma textual, deixando na interpretação e em soluções visuais a condução da história. Uma opção não só sábia, como também genial.

Este é um filme que conta a história de três mulheres. E o diretor de elenco não poderia ter sido mais feliz na escolha de suas protagonistas. O destaque vai para a veterana Meryl Streep, que domina a cena desde sua primeira aparição. Desde seu abrir de olhos, quando sua companheira (Allison Janney), chega em casa de manhã, fica clara sua insatisfação com o relacionamento. É a sua personagem que enfrenta o maior número de dilemas, desde a vida amorosa, passando pela relação com a filha (Claire Danes) e com um importante amigo (Ed Harris) – e ex-amante – que está prestes a ganhar um prêmio – e para o qual ela está preparando uma festa. É nela que se concentra a totalidade das ações, tanto físicas quanto mentais, das histórias anteriores – ou seja, ela é o resumo de tudo. Somente sua cena na cozinha, quando explode num choro convulsivo, é digna de qualquer reconhecimento.

Mas Clarissa não está só. Antes dela houve Laura Brown, indiscutivelmente o personagem mais difícil de As Horas. A composição realizada por Julianne Moore, repleta de olhares, falsos movimentos e intenções interrompidas, é uma verdadeira aula de cinema. Laura não tem do que reclamar em sua vida suburbana. É bem casada, tem um filho pequeno e está grávida do segundo. Sua única preocupação é, naquele dia, preparar um bolo para o aniversário do marido. No entanto, todas as pressões e cobranças da sua rotina estão prestes a explodir sobre sua cabeça. E o pior: são emoções internas, uma insatisfação própria que ela nem ninguém consegue dar fim. São pequenos momentos, como ao largar o filho na vizinha ou ao abraçar a amiga doente, que revelam o turbilhão de sentimentos de debilidades que está enfrentando. Uma atuação soberba, totalmente natural, do estilo que nos faz esquecer que estamos diante de uma atriz, e não de uma pessoa real enfrentando os mesmos problemas.

Por fim, temos Nicole Kidman, talvez a mais prejudicada por toda a atenção que o filme gerou. Ela se entrega por inteiro na missão de reviver Virginia Woolf, e isso está presente em cada uma de suas aparições. Apesar de ser uma grande atriz, no entanto, há muitos outros fatores que atrapalham em sua interpretação. Mesmo assim, o talento inegável que possui consegue sobreviver ao nariz postiço ou ao sotaque britânico forçado, num trabalho convincente e impressionante. As neuroses de uma artista em conflito interno são quase palpáveis em sua interpretação, e este é um mérito totalmente seu. No entanto, faltou-lhe um pouco mais de experiência para tornar este desempenho, de fato, inesquecível. Ainda mais tendo ao seu lado companheiras como as vistas neste elenco.

Stephen Daldry, assim como muitos dos seus colegas da produtora Working Title, poderia ser considerado apenas um talentoso artesão. Mas aqui ele mostra que pode alçar voos mais ambiciosos com competência. Sua sensibilidade na condução dessa história é irretocável, dando espaço suficiente para seu elenco demonstrar seu potencial, ao mesmo tempo que tem pulso firme para conduzir a trama para o melhor desfecho. Ao seu lado está alguém que entendeu como uma trama contada com tantos silêncios e pequenos gestos precisaria de ‘algo mais’. Esse recheio especial se obtém através da trilha sonora irrepreensível de Philip Glass, um legítimo artista sintonizado com o seu tempo: sua trilha não é personagem principal, não rouba a cena, mas é um coadjuvante de luxo que só soma ao encantamento geral.

São poucos os artifícios empregados para evidenciar cada uma das linhas narrativas, e dentre eles um dos mais impressionantes é a reconstituição de época. A direção de arte e os figurinos (esses merecidamente indicados ao Oscar) marcam com eficiência os mundos que rodeiam cada uma dessas mulheres, ajudando não só na compreensão da trama como servindo de contraponto ao espectador no caminho para as emoções fartamente distribuídas na tela. Sem cortes abruptos ou reviravoltas estilísticas, o editor Peter Boyle contribui para que as mudanças entre os três universos sejam muito subliminares, ao mesmo tempo em que as evidentes ligações entre elas são reveladas de modo fantástico, numa alternância tão necessária quanto imperceptível. Por tudo isso e muito mais, As Horas é um filme nota 10. Como poucos antes e muitos menos depois, é uma obra que se aprofunda no espectador, comovendo enquanto se desenrola e permanecendo retumbante durante muito tempo depois. Exatamente como deve ser.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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