Crítica

Antes mesmo da primeira ser exibida, uma informação a respeito de Animal Político é disposta na tela: trata-se de uma produção de Leonardo Lacca. Para quem não está ligando o nome a pessoa, trata-se do treinador de elenco de Aquarius (2016) e que havia estreado ele próprio como realizador com o sensível Permanência (2014). No entanto, quem for conferir a história dirigida por Tião tendo como referência o longa de Kleber Mendonça Filho selecionado para o Festival de Cannes ou o drama estrelado por Irandhir Santos premiado como Melhor Filme no Cine PE, certamente levará um grande choque. Afinal, tudo o que estes dois filmes investem em consistência dramatúrgica e intensidade nas atuações, esse aqui aposta na força de suas imagens. Uma escolha arriscada e, até por isso mesmo, nem sempre bem sucedida.

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Porém, ao escolher uma vaca como protagonista – levando ao pé da letra a expressão usada no título – o diretor já deixa claro que sua intenção é muito mais provocar do que atingir um consenso. O animal, dessa vez, é mais do que mera figura de linguagem. Ele está em todos os ambientes, levando uma vida praticamente normal – se humano como nós fosse, é claro. Vai ao trabalho, sai com amigos, faz compras no shopping, aproveita as noites na balada e curte momentos em casa. Mas algo, uma constante narração insiste em ressaltar, lhe falta. E será essa inquietação que o estimulará a seguir em frente, indo além do conforto que o cotidiano pode lhe proporcionar.

É quando se manifesta o senso político da questão. Não somos nós seres que dependem da interação social – e, como consequência, dos nossos esforços políticos de convencimento e negociação – para driblarmos os problemas do dia a dia? A vaca – e não se sabe se é ela ou ele, pois se a voz que se ouve é masculina, mas toda vez que refere-se a si própria é no feminino, além de conferirmos imagens da personagem no banheiro das mulheres ou em alegres encontros na lanchonete cercada somente por garotas – parece não satisfeita em apenas levar a vida ruminando. Ela busca mais, e talvez um retiro longe da sociedade seja o caminho – ou ao menos o início – em busca de alguma resposta.

Para isso, no entanto, é preciso antes saber quais questões estão sendo levantadas. Assim, duas outras figuras se fazem presentes no desenrolar da trama de Animal Político. A primeira está ainda no prólogo: homens engravatados, retos e concisos, porém a carência que os move é evidente, uma vez que não possuem cabeças. Este momento zumbi e sem reações irá ter como contraponto a pin up que ganha a cena no segmento A Pequena Caucasiana: trata-se de uma ninfeta, ao melhor estilo A Lagoa Azul (1980), que foi deixada sozinha em uma ilha após um naufrágio. Nua e sem nenhum pudor, ela se veste apenas com um par de botas (que parece ter crescido junto com ela), deixando claro que nada adianta o acumulado quando é a lei da selva que fala mais alto: joias não matam a fome de ninguém, e isso fica claro do modo mais evidente possível. Um é robótico, a outra é puro instinto. Extremos de uma jornada de autodescoberta a qual somos todos convidados.

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Outra referência forte em Animal Político é o clássico 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Se na ficção de Stanley Kubrick o monolito era o objeto indecifrável que atormentava a vida de macacos humanoides pré-históricos, aqui estes são todos os que ainda resistem. À vaca tal observação, no entanto, não compete. Ela precisa superar seu próprio vazio para começar a se preocupar com as indagações dos outros. Assim, mesmo sob uma esteira ergométrica ou diante da televisão na sala de estar de uma família qualquer, o estranho da situação se desfaz e o que se tem é um espelho de uma realidade muito mais próxima do que poderíamos imaginar. E entre altos e baixos, Tião e seu produtor Lacca alcançam algo inusitado, talvez não tão singelo e duradouro como os títulos citados no início deste texto, mas ainda assim dono de méritos próprios, mesmo que estes não sejam explícitos.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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