Crítica


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Sinopse

Amparo volta para casa após um longo dia de trabalho e descobre que seus dois filhos desapareceram. Ela logo fica sabendo que um deles foi recrutado pelo exército e será mandado a uma zona de guerra. Começa uma corrida contra o tempo.

Crítica

Amparo (2021) representa o que se convencionou chamar de “filme de personagem”, com uma câmera seguindo, na quase integralidade das cenas, o rosto de sua protagonista nas ruas, em casa, no trabalho, na conversa com amigos. É a imagem que se adequa aos movimentos da atriz principal, não o contrário - aposta-se numa fusão entre o dispositivo e a mulher que aparenta carregar a equipe consigo a cada passo percorrido. Em paralelo, o formato da janela, próximo do quadrado (a proporção 1:1.66) limita a presença dos coadjuvantes e cenários para se focar num claustrofóbico retrato em 3x4 da heroína pobre numa periferia da Colômbia. Assim, seu corpo e o rosto ditam as etapas da aventura, já que a estrutura do cinema, humilde, se mostra disposta a segui-la onde desejar ir. Nestes casos, consagrados por obras de cineastas como os irmãos Dardenne em Rosetta (1999), o herói determina sozinho os rumos da narrativa, tornando-se quase um coautor, um criador em conjunto. A identificação com o espectador nasce da incapacidade de dissociar a história de uma personagem só - o mundo gira ao redor de Amparo.

O diretor Simón Mesa Soto opera dentro da chave do realismo social, fornecendo um grave conflito à heroína: seu filho adolescente, Elías, acaba de ser recrutado para servir ao exército numa área perigosa da cidade. Em poucas horas, será enviado à batalha caso ela não encontre maneiras de subornar as pessoas corretas para livrar o garoto frágil, de voz doce e aparência infantil. “Lamentavelmente, a guerra é para os pobres”, resume um militar com inesperada franqueza. Por isso, a história se desenvolve pela necessidade de conseguir uma quantidade expressiva de dinheiro madrugada adentro, algo impossível para a pequena funcionária de uma empresa. Ela assume o protótipo da mãe-coragem, disposta a ultrapassar seus princípios morais na luta pela libertação do garoto. Venda de objetos, pedido de dinheiro aos amigos, ameaças ao amante e outras técnicas perigosas fazem parte dos recursos encontrados. Para poupar a violência ao filho, ela permite todas as formas de violência a si própria, de natureza física ou psicológica. Amparo se martiriza em nome da proteção alheia, através de um calvário revelado ao olhar cúmplice do público. Na cidade lá fora, ninguém terá consciência das circunstâncias pelas quais ela passa para conquistar o objetivo desejado.

Felizmente, o cineasta busca atenuar o conteúdo melodramático de sua mater dolorosa. Primeiro, escolhe atores inexperientes, sobretudo a protagonista Sandra Melissa Torres, de expressão severa, traços brutos e carrancudos - o oposto do que se esperaria de uma figura chorosa. Diante das más notícias, ela sustenta o queixo erguido, o nariz empinado, e encara os inúmeros homens pelo caminho com os olhos nos olhos. Em outras circunstâncias, ela poderia soar antipática, porém Soto trabalha de modo a coincidir tal postura com um senso inabalável de determinação. Amparo é representada por sua exterioridade - um corpo em movimento constante, de poucas hesitações ou ponderações. No sentido estrito do termo, converte-se numa heroína de ação. Este registro seria insuficiente para uma trama intimista ou melancólica, no entanto, ele se adequa ao princípio da corrida contra o tempo, que aproxima o resultado de um suspense. O filho, as vizinhas e colegas de profissão apresentam estilo de semelhante brutalidade - as mães são registradas por uma convicção quase maquinal. O filme escolhe honrá-la pela inabalável rigidez.

Além disso, o roteiro relembra que a vida social não se interrompe durante a resolução do conflito. Ela ainda precisa deixar a filha pequena na escola, bater ponto na empresa, verificar a saúde da mãe idosa. Diversos longas-metragens permitem que as heroínas dediquem a integralidade de sua energia à solução do embate principal. Ora, este drama oferece um painel da sociedade colombiana através do percurso da mulher pobre. Por suas andanças, descobrimos o universo da corrupção policial, o caráter perverso das forças armadas, o machismo do sistema, o desprezo pela mãe solteira de duas crianças e a criminalização da pobreza. O sexo se torna uma moeda de troca tão importante quanto o dinheiro: ela precisará se sujeitar a formas brutais de violência de gênero, registradas em caráter respeitoso. Soto sempre se atém ao rosto da mulher, evita prolongar as sequências de abuso e fetichizar os corpos. Desta maneira, expõe o sofrimento da mulher sem solicitar nossa piedade nem senso de horror. Pelo contrário, paira uma incômoda sensação de naturalidade neste percurso, como se diversas mães colombianas passassem por situação semelhante todos os dias - algo que constitui, em si, um relevante posicionamento político. 

Em contrapartida, o roteiro segue uma estrutura convencional até demais, disparando o problema com Elías no início, e encerrando-se quando encontra a questão militar encontra uma forma de resolução. A maioria dos projetos autorais presentes na 45ª Mostra opta pela conclusão aberta, onde algumas pontas são deixadas em aberto para a dedução do público. Ora, Amparo faz questão de acompanhar passo a passo do término, preocupado em determinar se os planos da protagonista foram bem-sucedidos ou não, e em proporcionar uma recompensa emocional ao espectador que seguiu esta jornada de cumplicidade. Hollywood está mais acostumada aos dramas preocupadíssimos com a satisfação do consumidor, garantindo que terá as lágrimas ou alegrias prometidas no final, e dotados de inegável otimismo face às diversidades. O desfecho da produção colombiana-sueca-catariana deixa pouco a reverberar pós-sessão, preferindo se encerrar em si mesmo, rejeitando metáforas, ambiguidades e acenos ao futuro. Em conjunção com o estilo bruto da câmera-corpo e das atuações austeras, produz um resultado tão satisfatório quanto tradicional, de ousadia limitada.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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