Crítica

Rosetta (Emilie Dequenne) reage como um animal encurralado ao receber a notícia de sua demissão. A câmera dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne capta com urgência documental essa angústia, aproximando-se o quanto pode da protagonista, demonstrando a compaixão de um olhar (ou dos olhares) que não está ali para testemunhar friamente, e tampouco se presta a uma vitimização canhestra baseada em lugares-comuns ou coisas que os valham. Em Rosetta sobressai a abordagem humanista, oriunda de um posicionamento diretivo horizontal, no qual é pulsante a busca pelo essencial, nunca rendido às classificações peremptórias que relegam os aspectos emocionais a meros acessórios no delineamento de figuras unidimensionais. Os Dardenne utilizam uma gama rica de sentimentos em frequente movimento, não poupando, inclusive, a menina, que sofre na pele o cotidiano dos desvalidos, de tomar atitudes condenáveis dos pontos de vista moral e ético, mas, ainda, assim, compreensíveis.

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Rosetta assume um peso que talvez a pouca idade não lhe permita carregar sozinha. Cuidadora da mãe afeita a prestar favores sexuais ao senhorio em troca de bebida, ela passa seus dias a procurar obsessivamente um trabalho que a resgate daquela penúria não somente material. As botas de borracha guardadas num bueiro, calçadas antes dos retornos diários para o lamacento acampamento de trailers onde mora, são um dos símbolos de sua existência repleta de pequenas derrotas. Rosetta é um filme em que a desesperança transpira pelos poros da imagem, instância cuidadosamente construída para potencializar a sensação de acompanharmos um périplo genuíno, tão doloroso quanto o cinema possa se dispor a oferecer. Para isso contribuem a fotografia, marcada prioritariamente pela utilização expressiva da luz natural, e a riqueza de uma concepção sonora que prescinde da música incidental, pois calcada no potencial dos ruídos como elementos narrativos determinantes.

Além da mãe dependente de cuidados, esta mulher derrotada frente à falta de perspectivas, outra pessoa importante ao longa-metragem é Riquet (Fabrizio Rongione), rapaz que trabalha vendendo waffles. Sua entrada na trama, em princípio, representa a chance de a protagonista conseguir outro emprego. Mesmo rechaçado pelos constantes modos ariscos da jovem que foge de contatos mais profundos, exatamente como um bicho selvagem ferido anteriormente e escaldado por um mundo avarento, ele tenta se achegar, oferecendo-lhe possibilidade não apenas na esfera prática, mas também e, principalmente, na emocional. A dança truncada dos dois, ao som diegético de uma bateria desajeitada no toca fitas, exemplifica bem a extrema dificuldade da garota para confiar sem ressalvas em alguém. Rosetta exibe a força das grandes obras, justamente pela capacidade impressionante de revelar o íntimo de seus personagens com o mínimo, méritos de uma encenação primorosa.

O desempenho da atriz Emilie Dequenne é capital à complexidade do papel principal e, por conseguinte, ao êxito do filme. O desespero, condição presente desde o começo, se impõe num crescendo que sobrepuja aparentemente a coragem e a força de vontade, sobretudo após os dois instantes em que a protagonista demonstra estar disposta a tomar atitudes extremadas para alcançar seus objetivos. Na primeira delas, a consciência vence, evitando uma tragédia. Na segunda, somos convidados a entender uma ação torpe e reprovável, algo perfeitamente possível em virtude da proximidade criada pelos diretores entre nós, espectadores, e os dramas em curso. Rosetta é um estudo afetuoso da miserabilidade humana, no qual o entorno opressor e as dificuldades impostas pela sociedade surgem violentamente nas bordas. E no derradeiro momento, quando a dureza atinge níveis quase insuportáveis, o beco sem saída pode guardar uma chance. Pode, mas não quer dizer que, de fato, a esperança prevalecerá depois do encerramento desta obra-prima dos irmãos Dardenne.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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