Crítica


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Sinopse

Quando Jamal, seu filho adolescente de 18 anos, desaparece misteriosamente depois de sair com amigos, Kendra e Scott, um ex-casal interracial, precisa enfrentar o preconceito de raça, gênero e classe dos procedimentos policiais padrão durante a busca pelo paradeiro do rapaz.

Crítica

Kendra (Kerry Washington) está desesperada. O filho saiu de casa durante a noite e não atende mais ao telefone. Dentro da sala de espera de uma delegacia, ela anda de um lado para o outro, chora, grita, liga para o garoto novamente. Chove forte lá fora, tornando esta madrugada ainda mais inóspita. American Son (2019) se inicia num ponto de tensão elevado, e jamais desacelera ao longo de 90 minutos. Embora discuta com diferentes pessoas, Kendra se mantém combativa. O jovem policial que a atende sustenta o mesmo comportamento passivo-agressivo, de falsa cordialidade, enquanto o ex-marido e pai do garoto desaparecido demonstra uma postura autoritária, por trabalhar no FBI. Esta ausência de transformações poderia ser justificada pelo tempo narrativo: o filme inteiro se passa ao longo de poucas horas na vida de quatro personagens. Assim, não haveria tempo verossímil para que mudassem. No entanto, o quarteto também não se transforma devido à incapacidade de ouvir uns aos outros. Eles têm muito a dizer, com frases fortes, aos berros, mas não estão dispostos a repensar suas posições.

O espectador logo perceberá que a narrativa se desenvolve na mesma sala de espera, do início ao fim. O diretor Kenny Leon introduz três rápidos flashbacks ou cenas de pensamentos dos personagens, no entanto os fragmentos são tão curtos que transparecem a indecisão do autor entre explorar novos espaços ou se ater à delegacia. Adaptado de uma peça de teatro, o roteiro cinematográfico não se esforça para tornar esta experiência mais dinâmica em termos de imagem ou interação: os personagens ficam sentados ou de pé, nos mesmos dois sofás, diante do fundo único das janelas e da chuva. Eles interagem pouquíssimo com o espaço, não utilizando os objetos nem reconfigurando o local a gosto. Mesmo adaptações teatrais de ambição artística bastante limitadas como Toc Toc (2017) e Nada a Esconder (2018) reviravam o espaço cênico do avesso em busca de múltiplas interações para os atores. Ora, no telefilme da Netflix, a sala de espera constitui precisamente um cenário, um pano de fundo. As brigas poderiam se passar igualmente dentro da sala do delegado, em frente à delegacia, ou na sala de espera de um hospital.

Esta escolha se justifica pela importância conferida aos diálogos. American Son proporciona uma intensa discussão sobre racismo, no qual a protagonista discute com o marido branco, com o delegado negro e com um funcionário branco sobre a dor de ser uma mulher negra nos Estados Unidos. De fato, há questionamentos intricados nas interações verbais. O texto vai muito além da constatação do racismo e do repúdio ao mesmo: ele busca entender os preconceitos estruturais, a hipocrisia dos brancos supostamente progressistas, a brutalidade policial, a maneira como o histórico de Jim Crow e dos Estados confederados paira sobre o país no século XXI. Discute-se escravidão, redes sociais, desigualdade econômica, a dificuldade de entrar em grandes escolas, o estereótipo do gângster, do malandro, do negro pertencente a uma gangue. Elaborado antes dos conflitos raciais que incendiaram o país em 2020, devido ao assassinato brutal de George Floyd, ele reflete uma sociedade que nunca acertou as contas com o passado, nem puniu os responsáveis pelo racismo. Ironicamente, a última frase proferida no filme, “Eu não consigo respirar”, consiste na última fala de Floyd, antes de ser asfixiado por um policial branco, em público, diante de diversas pessoas que o filmavam.

Por mais complexa que seja a discussão, ela se traduz numa forma de cinema superficial. O drama não representa o racismo, ele não ecoa ou mostra o preconceito, e sim o conta. A narrativa depende excessivamente dos diálogos para se desenvolver. Como Kendra precisa ensinar o ex-marido, o jovem policial e o delegado sobre atitudes condenáveis que eles sequer possuem consciência de cometerem, ela também ensina o espectador sobre o funcionamento perverso do racismo institucionalizado. O resultado se converte numa acalorada lição de moral sobre desequilíbrios sociais. O cinema permitiria que estes temas fossem abordados por uma troca de olhar, por uma maneira diferente de falar com uma pessoa branca ou negra, por metáforas, alusões, atitudes que pudéssemos presenciar e questionar por conta própria. No entanto, o espectador não é convidado a participar da discussão: solicita-se apenas que escute, coloque-se em seu lugar de inferioridade em relação ao discurso e aprenda. A narrativa demonstro atos claros de racismo, sobretudo da parte de Paul (Jeremy Jordan), mas o grande conflito está longe da cena. Como se pode imaginar, o filho de Kendra e Scott nunca aparece, e a câmera jamais acompanha ao vivo (nem a posteriori) o que de fato aconteceu ao garoto. Qualquer informação virá, como todas as outras, por meio de diálogos.

Para os atores, esta estrutura pode constituir um presente ou uma armadilha. Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1966) e Deus da Carnificina (2011) também trazem quatro pessoas digladiando-se numa sala de estar. No entanto, baseiam-se num texto repleto de nuances, como uma montanha-russa: a aparente cordialidade cede espaço à barbárie, depois à tentativa de fazer às pazes, até o próximo enfrentamento cruel. Em American Son, o tom dominante e linear será aquele da raiva. Kerry Washington entrega suas falas com o mesmo teor, do início ao fim, e uma atitude semelhante determina a atuação de seus parceiros de cena. A habitual valsa dos filmes em huis clos – um personagem avança, o outro recua; depois este avança para o outro recuar – é substituída pela lógica do vale-tudo. O palco-cenário, de fato, guarda algumas semelhanças com o ringue de luta. A experiência se torna tão potente quanto maçante ao espectador, visto que Leon prefere o enfrentamento à reflexão. Para o bem ou para o mal, o projeto sustenta um aspecto acusatório onde o incômodo constitui um objetivo, ainda que possa alienar o espectador. Resta o discurso mordaz sobre racismo, num momento pertinente, porém sustentado por uma linguagem frágil demais. Leon se interessa muito mais pelo seu tema do que pelo cinema.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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