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Sinopse

Erick acredita que foi enfeitiçado pela ex-esposa. Ao mesmo tempo, seu melhor amigo está pensando em recuperar um antigo amor por meio da magia. Mas, na verdade, eles terão de aprender várias lições para amar novamente.

Crítica

Por trás da aparência de uma comédia romântica, AmarAção (2020) efetua um retrato da crise de meia-idade. Dois personagens de classe média-alta, brancos, heterossexuais e com histórico de conquistadores, se confrontam à realidade de suas desilusões amorosas. O diretor Eric Belhassen oferece a si próprio o papel do “perdedor” em moldes norte-americanos: um sujeito sem trabalho, sem esposa, de poucos amigos e personalidade ranzinza. Ele encarna a figura do francês que já saiu com praticamente todas as amigas, sendo aparentemente irresistível – em gesto análogo àquele de Guillaume Canet em Rock’n’Roll: Por Trás da Fama (2017), de Jean Dujardin e Gilles Lellouch em Os Infiéis (2012) e de Yvan Attal em Ma Femme Est une Actrice (2001). Sob pretexto de efetuarem um retrato autodepreciativo da masculinidade frágil, estes realizadores reforçam o protagonismo de homens que adoram se colocar em cena conquistando mulheres belíssimas e mais jovens. Ainda que mostrem os corpos levemente envelhecidos, os criadores sem presenteiam, através da ficção, com a concretização de novas e velhas paixões. Nestes casos, as personagens femininas são desprovidas de conflitos próprios, e apesar das inúmeras atitudes contestáveis dos heróis, voltam aos braços deles num piscar de olhos rumo à conclusão, quando os conflitos se suspendem magicamente.

Apesar do discurso pouco ambicioso no que diz respeito à divisão social entre gêneros, o projeto poderia proporcionar uma experiência satisfatória pelo humor do incômodo, gags e confusões típicas da farsa. No entanto, a comédia sofre com inúmeros problemas técnicos, narrativos e discursivos. O roteiro transparece a dificuldade em conceber estes personagens no dia a dia, imaginando ambições para o futuro ou um desenvolvimento plausível para cada um. Erick passa os dias sentado no sofá, com um tablet na mão. A descoberta do folheto sobre “amarração amorosa”, preso a um poste, decorre de conjunção bastante artificial de direção de cena e de atores. Ao tomar conhecimento da existência de feitiços para a pessoa amada, deduz imediatamente que está enfeitiçado pela ex-namorada. Visto que jamais conhecemos esta mulher, não possuímos elementos para supor a veracidade do gesto. Então, o protagonista se inscreve num aplicativo de relacionamentos e convida quatro mulheres para um encontro simultâneo, sabe-se lá por quê. As garotas, revoltadas, armam um plano infalível para dar o troco no conquistador, porém o golpe jamais surte efeito. Este homem francês passa a conversar com o irmão francês (o codiretor, Marc Belhassen) em português (por que fariam isso?), enquanto o melhor amigo nota a aparência cansada de Erick e afirma: “Tá possuído, né?”. O herói viaja à França exclusivamente para encontrar o pai, mas jamais o vê – o viajante prefere fazer um passeio turístico pela torre Eiffel e pelos bâteaux mouches. Que parisiense efetua esse percurso?

As incongruências se sucedem em velocidade espantosa. Em menos de um terço de narrativa, poucos elementos fazem sentido de fato. O homem “amarrado” parte para Israel de maneira súbita, sem elaborar planos para tal, nem tirar qualquer aprendizado da aventura. Gravações escondidas em tablets ocorrem por milagre (as projeções de vídeos sobre as telas desligadas se revelam particularmente amadoras); o folheto da amarração reaparece nas mãos do protagonista muito tempo depois; um conhecido é encontrado por acaso na rua de outro país, e assim por diante. É difícil pensar que este roteiro tenha sido desenvolvido com calma e atenção, passando por diversos tratamentos até ser considerado pronto para a produção. As fragilidades na construção de personagens, na passagem do tempo e na exploração do espaço transmitem falhas básicas na construção da narrativa ficcional. Talvez este seja o caso em que a comédia se permite o esforço mínimo, afinal, “é apenas uma comédia, e não se leva a sério”. Ora, nem o evidente baixo orçamento, nem o gênero escolhido servem de justificativa para uma conjunção tão frouxa de conflitos e cenas. Em se tratando de uma fábula amorosa, seria importante aprofundar a afinidade dos dois casais, os problemas prévios, as aberturas progressivas ao retorno. Aqui, a amada de Erick é reencontrada antes que o espectador a conheça de fato. Vestindo roupas excessivamente formais para uma tarde em casa, esta mulher recebe a tarefa ingrata de sublinhar o poder de sedução do macho através de símbolos frágeis (a queda do globo em câmera lenta).

Infelizmente, as deficiências narrativas se tornam secundárias perto das dificuldades artísticas e técnicas. Os cineastas demonstram inexplicável dúvida sobre onde posicionar a câmera, como enquadrar os personagens e os espaços, por quanto tempo, e de que maneira estas cenas deveriam se articular com as anteriores e as seguintes. Consequentemente, a linguagem cinematográfica transparece as inconsistências típicas de uma experiência estudantil. A montagem nunca sabe de que maneira imprimir ritmo às cenas, efetuando cortes alternados entre planos equivalentes, sem motivos diegéticos para estas mudanças. Diante dos personagens sentados na casa da tia e no restaurante, a direção se vê incapaz de posicionar o quadro de modo a explorar o melhor de seus atores e atrizes. A direção aparenta trabalhar apenas com luz ambiente e focos duros de luz, investindo em filtros roxeados para as cenas em que Erick escuta a voz da ex, e num preto e branco de baixo contraste para os flashbacks em câmera lenta. Já a trilha sonora aposta numa composição genérica e repetitiva de dedilhados ao piano para a transição entre cenas. O trabalho de som direto carece de cuidado nas cenas da sala de estar e do restaurante, sem falar no som praticamente inaudível das vozes da ex. Novamente, o orçamento restrito seria incapaz de justificar estas escolhas, e não é o orgulho questionável de dispensar leis de incentivo na produção que redime a iniciativa de seu resultado final.

Os melhores momentos de AmarAção provêm de Caco Ciocler, Martha Nowill e Clarisse Abujamra. Embora munidos de personagens fracos, e dirigidos sem precisão (sobretudo no caso desta última), transparecem a experiência e o talento para o jogo cênico. Caco Ciocler, interpretando uma variação de si próprio, esbanja naturalidade nos diálogos com o amigo e nas pequenas variações cômicas (os abdominais na cadeira). Dentro do carro, ao lado dos amigos, o personagem favorece a impressão de possuir intimidade suficiente para fazer críticas e provocações. Caso pudéssemos conhecer melhor sua relação com o filho, o personagem cresceria bastante. No entanto, os experientes intérpretes fazem o possível dentro de uma produção incoerente. Uma intromissão metalinguística rumo ao final (“Parou! Eu não quero mais fazer esse filme!”) se torna inconsequente, sendo esquecida a seguir; e diálogos do tipo “Você diz que me ama, mas prefere acreditar na magia ao invés da magia do amor” apenas direcionam a experiência rumo à comédia involuntária. Há tantos problemas intercalados ao longo do projeto que surge uma curiosidade sincera a respeito do processo criativo. A sessão oferece menos o prazer escapista e despretensioso das comédias românticas do que o interesse a respeito de seu desenvolvimento: afinal, como se chegou a este resultado?

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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