Crítica


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Sinopse

Um homem de comportamento abusivo fala abertamente como se fosse um ferrenho crítico da violência.

Crítica

Felizmente os tempos mudam. Atualmente temos uma discussão pública bem mais ampla sobre assuntos que antes eram considerados tabus. Um deles é o feminicídio, as violências de gênero em geral, o que automaticamente lança luz sobre vícios da estrutura patriarcal das coletividades. Em Agora a Luz Cai Vertical, a cineasta grega Efthymia Zymvragaki se coloca como narradora e personagem, aparecendo rapidamente na tela próximo ao encerramento do longa-metragem, mas sendo uma voz constante que correlaciona as suas experiências como mulher às do personagem que tem diante de si: Ernesto, homem insular espanhol que assume abertamente ter espancado companheiras e até mesmo atentado contra a vida delas. Em vez de colocar em evidência alguma das várias vítimas, a realizadora oferece ao espectador a desafiadora experiência de acompanhar os depoimentos áridos do homem que afirma ter a personalidade dividida em duas: de um lado, a bondade, do outro, a mais pura perversidade. O primeiro ponto a ser ressaltado é que Efthymia não busca explicações psicológicas e/ou antropológicas para limitar esse protagonista complicado dentro de um esquema de classificação simples. A isso ela opta pela poesia, prefere entrelaçar as falas duras do homem com vislumbres líricos da natureza que transcorre alheia às construções sociais. Será que a selvageria é inata à psiquê de Ernesto?

Em nenhum momento a câmera julga Ernesto por seu comportamento agressivo. Enquanto apresenta peculiaridades do seu cotidiano, bem como as da beleza natural que o circunda, Efthymia cria pontos de contato com o protagonista. Ambos tiveram pais severos, ela foi vítima da brutalidade masculina e das engrenagens machistas, a infância dele se comunica de modo insuspeito com a dela, etc. Às vezes parece que a cineasta está mais interessada em encontrar possibilidades de identificação com Ernesto do que em revelar um pouco mais dessa figura enigmática que demonstra consciência de como seu comportamento é nocivo. Um dos aspectos mais interessantes de Agora a Luz Cai vertical é esse gesto de ir ao encontro da complexidade, negando os diagnósticos fechados a respeito das pessoas envolvidas. Um dos indícios disso é a atenção investida na relação de Ernesto com sua atual esposa, mulher aparentemente muito esclarecida a respeito do perigo corrido ao viver ao lado desse sujeito imprevisível. Tanto que os dois desenvolveram uma espécie de protocolo: ao identificar qualquer acesso de raiva mais desmedida, ela deve trancar o armário das facas e sair de casa, somente voltando à residência quando tiver certeza de que ele está melhor. Passando longe das categorizações, o filme não fornece pistas para identificarmos, por exemplo, de qual transtorno psiquiátrico Ernesto sofre.

Do ponto de vista visual, Efthymia se detém nas belezas da ilha de Tenerife, na Espanha, que serve também como ponto interseccional entre a sua história e a de Ernesto. Enquanto fala sobre o quanto a ilha espanhola se parece com Creta, localidade da qual migrou justamente para fugir das violências direcionadas a seu corpo feminino, ela fica longos períodos mostrando a água se chocando contra as pedras, a carcaça de um inseto morto há muito tempo, o horizonte paradisíaco, as flores sendo balançadas pelo vento incessante, assim enfatizando a beleza do lugar em contraste com a feiura das ações de Ernesto. Efthymia asfixia a narrativa com essa obsessão pela exuberância natural, tentando fazer de cada momento uma pequena epifania a ser reverenciada. Praticamente todas as imagens de Agora a Luz Cai Vertical reivindicam esse estatuto “maravilhoso” de uma natureza que nos passa muitas vezes despercebida. E, além dessa asfixia do filme por uma tentativa de resgatar a formosura que nossos olhos nem sempre identificam, o tom da voz da narradora-cineasta favorece a instauração de uma morosidade. Embora tenha somente 85 minutos, o longa-metragem impõe um verdadeiro desafio aos espectadores, pois permanece fielmente aferrado a esse propósito de enquadrar o fascinante, pouquíssimas vezes respirando para além desse ambiente raro de obsessiva busca pela beleza.

Agora a Luz Cai Vertical tem alguns momentos provocantes. Um deles é a proposta de contratar atores e atrizes para representar momentos cruciais (e dramáticos) da vida de Ernesto – e incumbir o próprio protagonista do documentário de dirigir os intérpretes. Nessa dinâmica, Ernesto fala completamente sem pudores de episódios pretéritos em que tentou assassinar suas companheiras, aparentemente se divertindo nesse processo de orientar um ator encarregado de transpor a sua história em ficção. Ali ficam implícitas questões como: até que ponto Ernesto não fantasia/hiperboliza o próprio passado em prol da imagem que deseja transmitir? O que o leva a externar ao mundo seu comportamento absolutamente reprovável e criminoso? Será que a outra personalidade, à qual atribui as atitudes selvagens, não é justamente a criação de um personagem fictício para melhor lidar com uma condição difícil de ser controlada? Efthymia Zymvragaki não se aprofunda como poderia nessas questões interessantíssimas, logo voltando ao cansativo processo de enquadrar a beleza do mundo enquanto reflete sobre si própria a partir dos causos contados por um homem que supostamente não consegue controlar a sua fúria. O resultado é uma experiência árdua, cansativa (pela forma como o fluxo narrativo é desenhado), mas que levanta questionamentos importantes sobre os tons sombrios da natureza humana.
Filme visto no 33º Cine Ceará, em novembro de 2023.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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