Crítica


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Sinopse

Está chegando o aniversário de Açucena. Os familiares preparam o bolo, o quarto rosa cheio de bonecas, vestidos novos e decoração de fábulas infantis. Mas Açucena tem 67 anos de idade, e todo ano, comemora sua festa de 7 anos.

Crítica

“Todo ano, uma mulher de 67 anos comemora seu aniversário de 7 anos”. A sinopse oficial resume as únicas informações que teremos a respeito desta personagem ao longo do documentário. Está chegando o aniversário de Açucena, e os amigos e familiares preparam a festa infantil. Um quarto rosa abriga dezenas de bonecas arrumadas, penteadas, usando vestidos novos, feitos à mão. O início do projeto é fascinante por sugerir uma personagem complexa, talvez descolada da realidade por algum distúrbio, ou apenas muito ciente da preservação de seus desejos da infância. Ela aprecia as bonecas, e por que não? Por que abandonamos o hábito de brincar quando passamos à fase adulta, aliás? Há respostas muito pragmáticas a esta questão. Mas a provocação possui, em si, seu valor. Açucena mobiliza dezenas de pessoas para criar um bolo perfeito, uma decoração precisa, para repintar as grades, para etiquetar cada boneca. O nome da protagonista está presente na maioria dos diálogos, na boca de todos. No entanto, ela mesma não o está. Jamais veremos a aniversariante.

A proposta ousada de nunca revelar esta mulher poderia constituir um ótimo exercício de linguagem, por permitir ao espectador imaginá-la à sua maneira. O diretor Isaac Donato concebe um espectador ativo a ponto de se tornar coautor: quem materializa a heroína, neste caso, somos nós. A representação pela ausência já gerou obras deliciosas em pulsões e suspense (vide Rebecca, a Mulher Inesquecível, 1940, ou O Bebê de Rosemary, 1968). Nestes exemplos clássicos, uma infinidade de elementos permitia conceber a personagem invisível, tanto física quanto psicologicamente. Sugeridos pelos olhos de terceiros, eles eram carregados de impressões deturpadas, julgamentos morais e filtros afetivos. Podemos pensar, a título de brincadeira – e a questão da brincadeira é fundamental neste projeto – como cada um de nós seria descrito por terceiros. A descrição faria jus às nossas subjetividades? Ora, no caso de Açucena (2021), ignoramos qualquer dado para além da paixão por bonecas. A origem deste gosto e a manifestação no dia a dia, fora das festas de aniversário, são ocultados pelos familiares. A personagem é privada de passado, de relacionamentos afetivos, de uma inserção social precisa: ela se limita à excêntrica senhora das bonecas.

A certo ponto, os questionamentos são inevitáveis: Açucena existe de fato? Seria uma lenda, um mito da região, a representação de algum ícone religioso? A narração sombria do início e a imagem de uma janela se acendendo à noite sustentam o mistério. Psicose (1960) e Terra Deu, Terra Come (2010) vêm à mente. Entretanto, não há indícios para sustentar nenhuma dessas hipóteses: Donato cria um jogo de investigação dotado de uma única pista. Torna-se impossível desenvolver as buscas a partir deste aspecto, razão pela qual a imersão do espectador e a narrativa se emperram após a introdução. A curiosidade logo se esgota, visto que o filme se repete, apresentando novas bonecas, novos vestidos, nova decoração. Personagens sobem e descem as escadas lentamente, em trechos que desenvolvem uma atmosfera sem fornecer elementos novos a respeito da região e do ritual de aniversário. Quando se torna claro que o cineasta jamais pretende revelar Açucena, nem aprofundá-la, o espectador fica condenado a uma saturação labiríntica de cenas equivalentes. Paira a incômoda impressão de um projeto que embutiu material bruto até atingir a duração mínima para ser considerado um longa-metragem.

Em paralelo, o procedimento do documentário se ficcionaliza. Durante uma ligação em vídeo entre cliente e costureiro, a câmera se encontra dos dois lados da conversa, ao vivo. Adiante, o enquadramento dentro dos cômodos fica bem posicionado para flagrar a janela, onde uma personagem aparece. Perto à grade sendo repintada, duas figuras familiarizadas com Açucena fornecem uma à outra informações de que ambas dispõem, apenas para transmitir dados o espectador – recurso típico das ficções televisivas, diga-se de passagem. A principal artificialidade não se encontra no ritual infantil para uma mulher adulta, e sim na sugestão de uma naturalidade condicionada, ou no melhor dos casos, reencenada para as câmeras. Todo os amigos se empenham na realização da festa com idêntica naturalidade, sem divergências de opiniões nem questionamentos. A uniformidade de gestos e percepções também transparece um realismo forçado: os personagens tornam-se intercambiáveis. Se Açucena, fora do quadro, nunca se desenvolve, os amigos captados pelas câmeras tampouco o fazem.

Por fim, Açucena produz um estranhamento quanto ao tom do projeto como um todo. Não se trata do distanciamento crítico, apenas uma constante hesitação a respeito dos métodos e objetivos da direção. Existe algum humor assumido nesta abordagem, ou a possível diversão diante das bonecas alheias constituiria um desrespeito à protagonista-simulacro e à seriedade do ritual? O mistério sugeriria algo doentio, perigoso ou mesmo perturbador na figura desta mulher, ou a tese de algo errado constituiria um julgamento depreciativo da nossa parte? Todos os exemplos de filmes mencionados acima fornecem uma espécie de conclusão, ou ao menos catarse, em torno da invisibilidade. Já o documentário baiano se contém. Pode-se elaborar dezenas de hipóteses a partir desta festa de aniversário, no entanto, elas pertencerão à cabeça do espectador insistente, não ao filme. O diretor elabora um tabuleiro interessantíssimo, mas depois se nega a entrar no jogo. Caso o interlocutor o deseje, ele que mova as peças sozinhos, dos dois lados, e conclua a partida. Há um caráter frustrante nesta trama de mistério onde apenas um participantes se esforça para levar a história adiante.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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