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O papa Francisco é líder de uma instituição milenar. E como uma organização sobrevive a tantas mudanças históricas de cenários sócio-político-culturais, senão mantendo uma postura de supremacia global, assim se garantindo entre os tomadores de decisão? Mas, com A Viagem de Papa Francisco o cineasta Gianfranco Rosi não está preocupado em salientar as contradições do discurso fraterno/ecumênico da Igreja Católica representada por seu sumo pontífice. Claro que o recuo histórico fará o espectador assimilar com certo pé atrás as demonstrações institucionais de boa vontade diante dos povos mundo afora. Isso, tendo em vista que a Santa Sé corrompeu, escravizou, violentou, dizimou dissidentes e traços culturais, tudo em prol de uma catequização umbilicalmente atrelada aos brutais processos de dominação colonizadora. No entanto, Rosi não está provocando essa tensão. Seu foco permanece restrito à figura humana do protagonista, o argentino Jose Mario Bergolio, 266º Papa da Igreja Católica e atual Chefe de Estado da Cidade Estado do Vaticano. Mesmo que sinalize o fato de Francisco liderar uma organização envolvida em escândalos de estupro de menores de idade por sacerdotes a quem essa infância havia sido confiada, a postura do documentário é positiva em relação ao homem que profere discursos conciliatórios, repreende a fome armamentista e prega o que a alguns parece um “comunismo”.
Mesmo que Gianfranco Rosi construa o seu longa-metragem com vários fragmentos de viagens (no plural) de Francisco pelos continentes, é interessante que os distribuidores brasileiros tenham mantido o termo “viagem” no singular, aludindo a UMA jornada formada por vários caminhos. A Viagem de Papa Francisco é um filme mais tradicional e menos provocador do que poderíamos esperar de um realizador tão experiente e disposto a colocar o dedo na ferida. Sua abordagem é evidentemente condicionada por admiração, algo evidente nas vezes em que o protagonista é observado fazendo mea culpa por algo dito que tenha ferido suscetibilidades ou provocado indignação em determinados grupos. Como quando afirma ser necessário apresentar provas a respeito dos abusos sexuais cometidos por um iminente bispo e, mais tarde, aparece se retratando ao afirmar que compreende como sua fala pode ter sido ofensiva às vítimas – além de sofrerem a violência, elas ainda precisariam apresentar as evidências de sua dor. Francisco demonstra consciência do histórico e das incongruências que lhe pesam às costas por conta do cargo. Por isso, ele se esforça para modernizar, de certa forma, o discurso oficial de uma instituição milenar que frequentemente reforça a tradição como um de seus pilares. Gianfranco Rosi privilegia as imagens de Francisco diante do povo nas mais diversas localidades do mundo.
A Viagem de Papa Francisco começa no Brasil, com imagens da visita do papa Francisco ao nosso país em 2013. Vemos um mundaréu de gente ao largo do trajeto papal pela cidade do Rio de Janeiro e, mais à frente, o santo padre discursando diante da plateia pobre que se protege com guarda-chuvas. Para reforçar a imagem do povo, Rosi entrecorta esse arquivo com trechos de Iracema: Uma Transa Amazônica (1974) e também de Cinema Novo (2016), assim buscando referenciais de representação no cinema local. Esse procedimento interessante não chega a definir a linguagem do filme (uma pena), depois aparecendo de modo esparso, sobretudo ainda na primeira metade do documentário. Entremear registros da visita de Francisco a Cuba com fragmentos de Memorias de um Subdesenvolvimento (1968) funciona também para criar essas pontes entre a realidade e a reprodução dela por meio do cinema dos países em questão. No entanto, como imagens de apoio, Rosi prefere sistematizar a utilização de cenas de alguns dos seus principais filmes anteriores, como El Sicario Room 164 (2010), Fogo no Mar (2016) e Notturno (2020), assim perdendo a força do diálogo simbólico com o cinema do(s) outro(s). No mais, a montagem assinada por Fabrizio Federico oferece um percurso demonstrativo da boa vontade do homem destacado dos demais por supostamente ter uma relação direta com deus.
Selecionado à 8 ½ Festa do Cinemas Italiano 2023, A Viagem de Papa Francisco pretende consolidar a sua mensagem principal (o elogio a Francisco) por meio da repetição. Gianfranco Rosi nos faz testemunhar o sumo pontífice defendendo a fraternidade, proferindo um discurso antibélico nos Estados Unidos (nação historicamente armamentista) e num esforço certamente incompatível à sua idade avançada de peregrinar pelo mundo para disseminar mensagens de conforto. Pena que o realizador se contente em somar situações parecidas e investir pouco nas diferenças entre cada destino do papa – por exemplo, a imagem do Papa-Móvel no Brasil mostra um mar de gente aguardando o religioso, enquanto a chegada à Cuba (vista do mesmo ângulo) é bem menos movimentada. Brasil, a mais numerosa nação católica do mundo. Cuba, território revolucionado no qual nem sempre o cristianismo é docilmente assimilado. Rosi não elabora essa carga retórica da justaposição, deixando o espectador menos consciente desse histórico à mercê da ignorância. Não que seja missão fundamental do documentarista informar, longe disso. Porém, como nessa ocasião, há outras em que o realizador perde a oportunidade de criar algo a partir de curtos-circuitos sócio-culturais-políticos. O resultado é um elogio a Francisco como líder político ou, melhor dizendo, o testemunho de um peregrino quixotesco e romântico.
Filme visto durante a 10ª 8 ½ Festa do Cinemas Italiano, em junho de 2023
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