A Turma do Pererê.doc

LIVRE 77 minutos
Direção:
Título original: A Turma do Pererê.doc
Gênero: Documentário
Ano:
País de origem: Brasil

Crítica

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Sinopse

Marcada como a primeira revista em quadrinhos brasileira totalmente em cores, A Turma do Pererê é considerada uma influência gigante para diversos autores. Além de abordar temas como ecologia e inclusão social, também é referenciada por se alinhar perfeitamente aos principais acontecimentos políticos da época.

Crítica

Um primeiro elemento de destaque neste documentário diz respeito à qualidade de suas imagens. Em meio a tantos projetos que buscam se legitimar pela relevância do tema enquanto ostentam problemas graves de som, fotografia e montagem, o filme dirigido por Ricardo Favilla demonstra uma preocupação notável com sua captação e finalização. A fotografia é bem trabalhada em cada depoimento, o som está impecavelmente registrado e editado, a montagem efetua transições ágeis, porém nada abruptas, entre ideias distintas. Apesar de se basear no formato engessado dos talking heads – as cabeças falantes, a primazia dos depoimentos em relação às imagens – o diretor extrai o melhor possível, em termos de acabamento, deste dispositivo.

Além disso, Ziraldo e a Turma do Pererê são estudados por um prisma puramente histórico e analítico, ao limite do obsessivo. Os filmes-homenagens costumam enaltecer a figura do criador por trás da obra, porém Favilla se priva da habitual idealização que implicaria em descrever o artista como um bom pai, bom amigo, sujeito de índole inquestionável, ícone das gerações futuras etc. Não existe preocupação alguma com a vida pessoal dos artistas envolvidos, apenas sua relação com a arte, o desenvolvimento dos traços autorais, a relação com o contexto sociopolítico da época: a ditadura militar, a chegada dos primeiros quadrinhos, as pressões mercadológicas e afins. Este filme dedica um tempo considerável à criação dos personagens, à recepção dos mesmos, aos temas mais comuns de Ziraldo.

Deste modo, A Turma do Pererê.doc impressiona pelo apaixonado trabalho de pesquisa, dotado de rigor investigativo e foco muito claro na relação entre criador e criatura. Por incrível que pareça, os egos desaparecem neste painel que inclui Laerte, Jaguar e Maurício de Sousa. Enquanto isso, o cineasta opta pelo recurso à estética dos quadrinhos – algo não exatamente inventivo, mas pertinente dentro deste contexto. A animação dos desenhos estáticos e os efeitos digitais de transição entre fotos e gibis se esforçam em atribuir ao filme o aspecto lúdico dos desenhos. No encontro entre o aspecto fotográfico do cinema e a fantasia própria à ilustração o documentário apresenta a sua força – mesmo que a repetição dos letreiros descritivos de cada entrevistado soe dispensável, por exemplo.

A aproximação entre cinema e quadrinhos também surge na ideia de que ambos constituem projetos de resistência cultural, dois casos em que o público nacional ainda prefere consumir produtos norte-americanos. Favilla jamais se aprofunda em sua análise política, porém sugere que, para além da resistência à ditadura e sua censura, o trabalho de Ziraldo se revela político pela escolha das formas, pelos temas ecológicos, por retratar garotos e garotas em termos equivalentes. Fazer arte contra as normas preestabelecidas constitui uma postura política em si, algo que o documentário resgata bem ao filmar tanto Ziraldo quanto Maurício de Sousa com o papel e a caneta em mãos, desenhando aos olhos da câmera. Por consequência, rumo ao final, discute-se o fim do Pererê, mas jamais a aposentadoria dos artistas, percebidos como sujeitos em atividade, e bastante críticos em relação à produção de quadrinhos desde então.

Faltaria apenas, ao belo projeto, refletir sobre o papel do documentário enquanto linguagem autônoma. A Turma do Pererê.doc não escapa do tradicional medo do silêncio – os personagens precisam falar o tempo inteiro, guiando o espectador pela exposição oral de suas ideias – enquanto as imagens se reservam à função de ilustrar o conteúdo sonoro. Não existem rupturas entre som e imagem, espaço para a contemplação, nem mesmo a captação de cenas pelo diretor que representem, metaforicamente, o papel dos quadrinhos de Ziraldo nos tempos de hoje. Não se busca ruídos na imagem, nem qualquer espécie de atrito nas formas, como fizeram, recentemente, documentários como Jonas e o Circo Sem Lona (2015), Campo de Jogo (2015) e Caminho de Volta (2015).

Este sempre será o problema dos filmes comportados demais para falar sobre os pioneiros, filmes padronizados que buscam elogiar quem foge dos padrões. O documentário, mesmo de baixo orçamento – ou talvez graças a este baixo orçamento – é capaz de ousar muito mais nas formas, na linguagem, no ritmo, na relação com o espectador. A reflexão sobre o uso desta ferramenta constitui um papel tão importante ao cineasta quanto o evidente cuidado demonstrado com seu tema e seus entrevistados. O cinema não pode ser reduzido ao veículo para se contar ou debater uma ideia – ele sempre será, acima de tudo, uma forma capaz de carregar um discurso pelo simples agenciamento de suas imagens.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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