Crítica


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Sinopse

Escravos muçulmanos que viviam na Bahia, em 1835, arquitetaram uma rebelião contra os fazendeiros. A escrava Guilhermina, de 27 anos, reúne as condições necessárias para comprar a liberdade de sua filha e de si própria, mas tem a carta de alforria negada pelo senhor. Ela aproveita a ebulição dos acontecimentos para planejar sua fuga.

Crítica

Para quem não sabe, a noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, na cidade de Salvador, capital da Bahia, ficou marcada por um levante de escravos, em sua maioria muçulmanos. Foi o movimento de maior relevância abolicionista até então naquela região. O episódio ficou conhecido como A Revolta dos Malês, que dá nome também ao filme de Belisário Franca e Jeferson De. O longa, na verdade, nada mais é do que uma adaptação da mesma trama já exibida em episódios em uma série de televisão. Ou seja, encurtou-se a história, optando por focar nos personagens mais relevantes, ao mesmo tempo em que foi possível oferecer um olhar mais próximo aos verdadeiros protagonistas deste incidente. Não só oferecendo estofo dramático para o ocorrido, mas também dotando a ficção dos elementos necessários que possam combinar entretenimento com aprendizado. Ilumina-se o passado, ao mesmo tempo em que se posiciona consciente de sua função nos dias de hoje. Assim, os realizadores acertam tanto em sua proposta, como também nas limitações que assumem como legítimas.

Os malês eram negros de origem islâmica. Também conhecidos como imalês, demonstravam descontentamento com as condições pelas quais eram tratados. E não apenas os escravos, mas também os alforriados, muitos deles mestiços e crioulos. Este é o caso da protagonista, Guilhermina, vivida por Shirley Cruz. Há muito economizava para conquistar seu maior sonho: a liberdade sua e da filha Teresa (Jamilly Mariano). Quando acredita ter finalmente a quantia suficiente, ao se deparar com seu ‘senhor’, o fazendeiro Souza Velho (Roberto Pirillo), se vê diante de uma triste notícia: ele concorda em aceitar o dinheiro no nome dela, mas se recusa a se desfazer da garota. Sem poder argumentar, a mulher é expulsa da propriedade, se vendo, de uma hora para outra, afastada da família e de tudo que conhecia. É quando acaba se envolvendo com Licutan (André Ramiro), um líder religioso que terá participação fundamental no protesto batizado como Revolta dos Malês.

Sem condições para oferecer ao espectador um épico histórico desenhado nos mínimos detalhes, Belisário e Jeferson optam por uma construção mais minimalista, mas não menos impressionante. Fotografado quase que por inteiro em ambientes internos, os diretores se veem obrigados a privilegiar o que possuem de melhor – o elenco reunido – deixando cenários e figurinos num segundo plano. Assim, o que poderia ser um elemento adverso acaba por se revelar um mérito, pois cria ambientes propícios para que atores como Rodrigo dos Santos, Zezeh Barbosa e Raphael Logam, além dos já citados, não apenas consigam capturar as atenções da audiência, mas também sejam eficientes em conduzi-las rumo a uma sequencia de reviravoltas e desenlaces que contribuem no desembaralhar histórico ao qual se veem a par. Suas discussões e anseios podem parecer datados de dois séculos atrás, mas assumem uma contemporaneidade impressionante. Isso se deve não apenas ao roteiro, que vai direto ao ponto, mas também no empenho destes artistas comprometidos com o discurso em questão.

Se faz necessária uma atenção especial ao desempenho de Shirley Cruz enquanto condutora principal da história. Ainda que esse seja o relato de muitos, foi curiosa a opção de se assumir um ponto de vista externo, dessa mulher que se vê envolvida no episódio quase que por acaso. Ela não está preocupada com os malês e suas reclamações – ao menos, não nesse momento. O que lhe move é o bem-estar da filha, uma criança prestes a virar mulher. Esta é a deixa para se discutir não apenas a participação feminina no ocorrido, mas também como elas eram vistas tanto como parte importante na engrenagem laboral, mas também ligadas ao mercado do sexo. Shirley expõe com cuidado este conhecimento e os temores em relação ao futuro da filha. É pela atuação precisa da atriz que o espectador será convidado a compartilhar desses momentos de grande tensão, permanecendo ao seu lado e partilhando de uma possível empatia mesmo diante de escolhas dúbias, mas que prometiam resultados práticos. Quando sente a consequência de suas decisões, também se sofre do lado de cá da tela.

É possível que A Revolta dos Malês tenha maior peso e relevância enquanto obra seriada, principalmente pela oportunidade de desenvolver com maior propriedade as motivações e os destinos daqueles diretamente afetados. Por outro lado, o filme faz jus à sua existência pela estrutura enxuta que abraça, assim como pela objetividade de sua narrativa. Uma obra que resgata um importante momento da história brasileira, assumidamente racial, mas que não se limita a falar apenas de e para os envolvidos. Assim, amplia seu espectro e alcance, levando sua mensagem para além dos portos facilmente reconhecíveis. A preocupação audiovisual existe, assim como atinge notas mais altas justamente por não se contentar com o óbvio. Fale de si e converse com o mundo. Esta parece ser a maior das lições, aqui empregada com cuidado e dedicação. Um belo acerto, como se percebe.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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