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Sinopse

Raul tem 50 anos, é alcoólatra e está desempregado. Sua tábua de salvação é Lígia. Porém, o vínculo deles não é mais o mesmo. Numa noite conturbada, Raul encontra uma jovem desgarrada que lhe desperta algo.

Crítica

Em A Morte Habita à Noite (2020), as personagens femininas se transformam, mas os personagens masculinos, não. A partir do momento em que Lígia (Mariana Nunes), Cássia (Endi Vasconcelos) e uma desconhecida (Rita Carelli) cruzam o caminho de Raul (Roney Villela), elas sofrem guinadas radicais até de se sublimarem, tornando-se outdoors, pôsteres e fantasmas. Já o homem alcoólatra aguarda pelo encontro seguinte. Há uma condição trágica neste protagonista, catalisador do desenvolvimento alheio, porém incapaz de modificar a si próprio. Da primeira à última cena, ele cospe sangue, transpira e fede, perambulando por cortiços imundos e vielas repletas de lixo. Numa narrativa tradicional, o personagem estaria condenado a uma doença letal (Raul foi inspirado em Charles Bukowski, vítima de pneumonia). No entanto, o diretor e roteirista Eduardo Morotó privilegia a inércia deste homem-espectro à possibilidade de reinvenção de si. O olhar foge ao otimismo (“ele se encontra no fundo do poço, mas só pode melhorar”) para abraçar o niilismo (“ele se encontra no fundo do poço pois esta é sua sina”).

O filme demonstra fascínio pela marginalidade-espetáculo, do tipo em que todas as dores transparecem no corpo, alguns graus acima do naturalismo. Dividido em três atos reservados a cada mulher (separados por um longo intervalo da montagem, sem letreiros indicativos), o roteiro é povoado por personagens diariamente bêbados, sujos, suados, resmungões, lânguidos, cambaleantes. Eles conversam num misto de embriaguez e sonho, arrastando-se de um cômodo ao outro, de uma delegacia à casa, do quarto à cozinha. Apesar dos destinos sensivelmente distintos, o quarteto vive um eterno presente, sem família nem amigos, sem emprego fixo, sem objetivos nem ambições futuras. Eles são chutados de um cortiço para encontrarem abrigo em outro, idêntico. Entram em cena as mesmas paredes corroídas, sofás esburacados, janelas sujas e cortinas encardidas. Morotó insiste no cheiro das peles impregnadas de álcool, cigarro e peixe – Raul faz bicos na peixaria, limpando as peças cujas escamas voam para todos os lados. Durante o dia, eles habitam cômodos onde a luz do sol se nega a entrar, permitindo apenas a insistente lâmpada fria acima dos personagens, produzindo uma sombra dramática sobre os corpos.

Estranha-se a abordagem de uma marginalidade íntima – afinal, todas as mulheres podem ser lidas enquanto delírios-projeções deste escritor que quase nunca vemos escrevendo, tampouco manifestando interesse pela literatura alheia. Não há uma sociedade propriamente dita para justificar a marginalidade deste marginal. Os chefes da peixaria estão ausentes, a mulher cobrando o aluguel não dá as caras, os familiares abusivos não possuem rosto. Evitam-se os grupos de amigos no bar, a noção de bairro, e qualquer outra instituição (família, igreja, escola, governo): os personagens estão abandonados aos espaços internos e psicológicos dos cortiços. Raul embrenha-se pelas ruas escuras e vazias, porém raramente mergulha na multidão durante o dia. Talvez o homem também corresponda a um fantasma, assim como suas companheiras. Isso explicaria a incapacidade de gozar a partir de um corpo tão sexualizado. A Morte Habita à Noite evita os pudores para a nudez, ainda que se mostre casto no sexo. Os anti-heróis falam sobre “uvas tiradas do cu”, “pimenta na xoxota” e “pimenta no pau”, declaram o tesão uns pelos outros, entretanto, ficam presos ao estado pré-gozo – nem o orgasmo é permitido a estes personagens desprovidos de catarse.

Por isso, quando Raul descobre notícias devastadoras sobre o trio feminino, ele não contesta, apenas acata sua solidão eventualmente interrompida pelas esporádicas noites acompanhado. Apesar das personalidades distintas, estas três figuras carregam uma corporeidade igualmente despojada, o mesmo cabelo encaracolado farto, a mesma atração magnética pelo homem perdido. Como é triste fornecer instantes bruscos de felicidade a um deprimido crônico, apenas para lhe retirar os abraços do dia para a noite! O homem se vê condenado a cuspir, tossir, literalmente cair pela sarjeta. O imaginário coletivo do bêbado se cola em certa medida ao protagonista que não vemos bebendo com frequência – a embriaguez se converte em estado de espírito, ao invés de um problema para Raul ,– mas que ostenta o eterno olhar perdido, a fala desencontrada, o corpo exausto. Até Cássia, jovem “cheia de vida”, parece cheia pela metade, ou plena apenas aos olhos deste homem desprovido de tudo. Raul está longe da figura do coitado (o filme não tem pena dele, tampouco o julga moralmente), porém também não deseja se reerguer.

A estética do desgaste (emocional para os personagens, e físico para os cenários) constitui o mérito e a limitação do drama. Morotó demonstra pleno controle do efeito procurado em cada cena, calibrando a direção de fotografia e a direção de arte para atingirem a máxima ebriedade possível. No entanto, estes recursos se repetem sem variação: os espaços são igualmente carcomidos e imundos, as luzes soam idênticas nos corredores ou dentro dos quartos, o vestido de Lígia praticamente se repete em Cássia. Os atores entregam-se com generosidade, porém sucumbem à teatralidade desses encontros a dois, em cenários com os quais interagem pouco, rindo com as amigas a noite inteira sem que o espectador descubra o motivo de tanta graça. Como não sucumbir à tentação de encarnar o estereótipo do bêbado numa narrativa onde todos o são? Pedro Gracindo força a coluna para trás ao limite da monstruosidade, Endi Vasconcelos desmonta tronco e membros ao interpretar a prostituta de baixo escalão. Para o bem ou para o mal, o aspecto mais flagrante destes personagens se refere à constituição imaginária: eles correspondem a conceitos de bêbados, ideias de marginais, perambulando por um cenário indeciso entre o ultrarrealismo e a estetização do submundo.

Filme visto no 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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