Crítica


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Sinopse

Isolada no interior com a filha e o marido, Renata compreende o medo como algo comum, cotidiano. A chegada à localidade de um desconhecido muda tudo, despertando coisas até então adormecidas.

Crítica

A Mesma Parte de um Homem (2021) pode ser interpretado como metáfora sobre a dificuldade de realizar o luto. Quando uma família patriarcal humilde perde o único referencial masculino, tem dificuldade de aceitar a nova situação. Há perigos lá fora, ainda que invisíveis: animais fazem barulho nas redondezas, fala-se em assassinatos cruéis dos vizinhos. Por isso, a mãe Renata (Clarissa Kiste) e a filha Luana (Laís Cristina) se fecham em casa, trancam as portas, recusam a aproximação de outros homens. Estas mulheres sentem que, sem o escudo masculino, podem ser invadidas e violadas a qualquer momento. Em consequência, as duas criam a figura de um substituto que permita continuar a vida familiar sem se confrontarem à morte do pai e marido. O filme parte de um diagnóstico tão doentio, no sentido estrito do termo, quanto humano, a respeito das relações de dependência, afeto e exploração entre familiares. No processo, decide implodir a sociedade tradicional: a esposa submissa se empodera a partir da chegada do forasteiro, a filha andrógina descobre seu potencial de violência e rebeldia. A negação se torna o primeiro passo para um processo de transformação.

O roteiro de Ana Johann e Alana Rodrigues é excelente. Ele sustenta as delicadas trocas de poder entre três personagens complexos, sofrendo guinadas intensas de percepção do mundo. Conforme os desconhecidos passam a conviver, isolados do mundo lá fora, instauram-se dúvidas sobre quem realmente possui o controle da situação: será Luís (Irandhir Santos), o forasteiro misterioso, que encontra acolhimento, afeto e sexo, ou será Renata e Luana, podendo enfim condicionar uma figura paterna e masculina às suas necessidades? A presença deste sujeito de passado indefinido (herdeiro direto do John McBurney de O Estranho que Nós Amamos, 1971, e do visitante sem nome de Teorema, 1968) representa simultaneamente um aumento do potencial erótico e do perigo de morte. A família acolhe um animal selvagem, despertando dúvidas sobre quem é a presa e quem é o caçador. Afinal, de que lado da porta de casa se encontra o perigo? Nunca se sabe ao certo de Luís vai atacar ou abraçar Renata, se vai cuidar de Luana ou estrangulá-la no meio da floresta. “Eu jamais faria mal a um cachorro”, promete o sujeito que, poucas cenas depois, flerta com a crueldade animal.

Em suas contradições, estas figuras despertam fácil identificação ao serem mobilizadas essencialmente por pulsões e vida e morte. Por isso, a história não precisa verbalizar o óbvio: a montagem oculta a revelação da morte, o enterro, a descoberta do cadáver, e outras revelações durante a convivência do trio. A diretora Ana Johann respeita o espectador e também o potencial das imagens, sem explicar aquilo que pode ser compreendido através dos olhares, ou reforçado pelo silêncio. Os símbolos ocupam um espaço importante: o sapo coaxando após a chegada de Luís, e então preso num jarro de vidro; a lanterna acendendo e apagando ao ritmo do ato sexual no quarto ao lado; a galinha morta fora do enquadramento; o cachorro devorando um ovo cru. O imaginário animalesco constitui a fonte primária de significado para este filme repleto de sons de grilos, silhuetas de javalis, ataques de cachorros, bicadas de galinhas. Estamos falando de instinto, portanto, de algo incontrolável, mais forte que a razão. A metade escondida dos protagonistas (a outra parte de um homem?), seja recalcada ou reprimida, se traduz esteticamente nos diálogos com o foco em apenas um personagem, enquanto o outro permanece em off.

Diante de tantas qualidades na elaboração do texto, a direção sofre com algumas debilidades, sobretudo no primeiro ato, prévio à incorporação de Luís. As escolhas são coesas, porém se situam muitos graus acima do realismo, e mesmo do teor esperado da fábula: a mãe é catatônica demais, com a fala primitiva e as costas recurvadas; a filha tem os cabelos desgrenhados cobrindo o rosto, além do caminhar excessivamente duro. Até Irandhir Santos, ator de sutilezas, transforma sua dor em espetáculo na primeira saída da casa, num misto de choro e espasmos de vômito. O ato inicial chacoalha a câmera, fecha os enquadramentos perto demais dos rostos, aposta nas roupas beges dos personagens diante de paredes muito cinzentas, inóspitas, sem qualquer decoração. Felizmente, o filme cresce bastante após o início, aparando o terror da miséria e da opressão feminina para criar zonas limítrofes de provocação e disputa. Clarissa Kiste, atriz sempre muito forte (às vezes incontrolável, se o diretor não possuir um direcionamento firme), melhora significativamente após a chegada de Luís, enquanto Laís Cristina consegue oferecer nuances à garota selvagem.

A primeira impressão pode ser pouco convidativa, porém a estrutura da gradação (as ações se intensificam cena a cena, até a explosão) culmina num desfecho primoroso em termos de direção, atuações e montagem. Cada enquadramento é escolhido cuidadosamente para extrair a máxima potência sem explicar aquilo que pode ser compreendido por si só. Johann fornece um desenlace adequado ao trio, enquanto sustenta zonas sombrias. O resultado funciona tanto enquanto drama intimista quanto suspense psicológico – categoria onde as melhores obras são aquelas em que o espectador nunca sabe ao certo se os protagonistas estão prestes a se matarem ou fazerem sexo uns com os outros. Explora-se com segurança o huis clos (inclusive a céu aberto, na floresta), a força dos sons e imagens fora de quadro, o capital poético e discursivo dos símbolos. A cineasta aprofunda a psicologia dos protagonistas enquanto dilui as precisões de tempo e de espaço (qual é a distância entre o sítio e o centro da cidade? Quantos dias se passam do início ao fim?). O espectador é mergulhado num labirinto mais preocupado com sensações do que fatos. Afinal, nada impede que uma ou mais ações se passem no imaginário destes personagens assombrados pela morte.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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