Crítica
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Sinopse
Uma menina introspectiva é enviada para morar com parentes na zona rural da Irlanda em 1981. Enquanto ela cresce e descobre novas possibilidades, surge um segredo que ameaça desestabilizar tudo.
Crítica
A pequena Cáit (Catherine Clinch) vive com a sua numerosa família numa propriedade cinzenta, respirando um ar desagradável em virtude da animosidade existente entre o pai abrutalhado e a mãe sobrecarregada pelos afazeres da casa. Criança introspectiva, ela não tem qualquer poder de decisão acerca da própria vida, tampouco algum ímpeto de protestar diante das decisões que os adultos tomam a respeito dela. Assim, quando seu pai a coloca num carro rumo à casa de um casal de estranhos (a mulher é prima de sua mãe, na verdade) ninguém explica a ela o que está acontecendo, afinal de contas nesse mundo, o da Irlanda rural dos anos 1980, os pequenos não têm direito a decisão, sequer a respeito das coisas relativas ao seu cotidiano. Aliás, esta é uma das marcas do desenvolvimento de A Menina Silenciosa: a imposição da condição passiva a uma protagonista que não entende bem o mundo ao seu redor em virtude dessa ideia de que as crianças precisam apenas obedecer e se adaptar. Para transmitir ao espectador essa ignorância à qual Cáit é submetida por conta da sua condição infantil, o diretor Colm Bairéad evita nos conceder informações detalhadas num primeiro momento. Nos interrogamos: “quem são essas pessoas?”, “quando tempo a menina ficará longe da família?”, “ela foi adotada ou voltará?”. E esses questionamentos apenas serão esclarecidos na medida em que Cáit for desabrochando.
Indicado como representante da Irlanda para concorrer ao Oscar de 2023, A Menina Silenciosa se impõe por essa construção narrativa repleta de silêncios e gestos indicativos. Uma vez acolhida pelo casal formado por Eibhlín (Carrie Crowley) e Seán (Andrew Bennett), Cáit experimenta uma nova forma de ser tratada. Se na casa dos pais era mais uma da prole que se criava meio sozinha, sem a possibilidade de uma atenção dedicada da mãe sobrecarregada, na residência dos tutores ela se torna o centro das atenções. Portanto, estamos diante de uma trama em que alguém deixa uma condição quase invisível para se tornar protagonista, mesmo ignorando quase completamente que está, na verdade, ajudando a tapar o buraco emocional deixado por uma perda precoce. Eibhlín e Seán perderam um filho pequeno recentemente e, de certa forma, acolhem a filha da prima dela para preencher esse espaço infantil na casa que, uma vez inabitado, acaba provocando um vazio cotidiano difícil de ser encarado. Mas, mantendo a perspectiva infantil em voga, o realizador Colm Bairéad impõe às nossas descobertas o mesmo ritmo do conhecimento de Cáit, ou seja, deixa diversas coisas subentendidas, evitando o quanto pode os diálogos expositivos demais, tratando as novidades como iguarias a serem degustadas lentamente, em camadas. Vamos descobrindo aos poucos do que é feito esse cenário complexo.
A atenção principal do filme fica retida nos processos de adaptação, seja o da menina recém-chegada, o da mulher que se vira em cuidados com a parente ou o do homem que resiste à novidade. Uma vez que a timidez da criança, a atenção exagerada de Eibhlín e a indiferença de Seán vão amenizando, como num processo natural de aclimatação, A Menina Silenciosa passa a ser uma história sobre como esses indivíduos feridos, cada um à sua maneira, podem se ajudar mutuamente num processo de cura, senão total, mas terapêutico de toda forma. Colm Bairéad escapa de algumas armadilhas, especialmente ao desenhar o vínculo entre a menina carente e o adulto que parece relutante em estabelecer vínculos afetivos com a figura substitutiva do filho, cuja morte permanece como uma dor latejante em seu dia a dia. Os desempenhos dos ótimos Catherine Clinch e Andrew Bennett são importantes para que esse processo de adequação aconteça a partir das minúcias, sem a necessidade de rompantes emocionais repletos de palavras cortantes ou algo que o valha. Faz parte da natureza desse longa-metragem a tentativa de expressar o que verdadeiramente importa por meio das imagens, dos gestos hesitantes, dos olhares que não escondem expectativas, das frustrações expressadas em atos banais, etc. Tudo para manter o foco nesses vínculos emocionais com poder curativo, sem descambar à pieguice.
No entanto, A Menina Silenciosa não transita pelo campo minado sem acionar algumas bombas pelo terreno. Em momentos pontuais, o realizador toma um desvio do seu caminho da sugestão, momentaneamente fazendo uso de dispositivos explicativos com o intuito de escancarar as informações que até então pairavam no ar como possibilidades. E o grande exemplo disso é a vizinha fofoqueira com quem Cáit caminha em determinada parte do filme. Com suas perguntas intrometidas e colocações inadequadas, acaba contando à menina tudo o que ela precisa saber sobre seus novos tutores, incluindo aí as circunstâncias da morte do menino – o que acaba ressignificando a ida diária com Eibhlín ao poço para coletar água. Essa informação direta contrasta com a aposta nas insinuações e meias palavras que até ali davam perfeitamente conta de deixar o espectador situado, ao menos o suficiente para compreender o cenário e encaixar os personagens nele. Já a belíssima fotografia assinada por Kate McCullough também oferece uma oposição marcada demais entre a iluminada propriedade dos tutores e a casa quase sombria da família de Cáit (sem colocar em pauta a diferença de estrato social), assim sendo pouco sutil quando é preciso comparar os dois ambientes num momento decisivo à pequena protagonista. Mas, os escorregões são pequenos se comparados aos acertos do filme irlandês.
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