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Sinopse

O diretor Chris Marker acompanha o cineasta Akira Kurosawa durante a produção de Ran (1985), nas encostas do famoso Monte Fuji. A filmagens acontecem sob duríssimas condições atmosféricas.

Crítica

Comuns desde que explodiu o consumo de DVDs, os documentários de produção frequentemente são meros apêndices de algo. Desse modo, basicamente fornecem informações de bastidor e curiosidades. Não é o que acontece em A.K., ambientado nas filmagens de Ran (1985), uma das produções mais suntuosas e celebradas de Akira Kurosawa. Isso, porque Chris Marker, realizador francês que dispensa maiores apresentações por sua importância, não está necessariamente interessado em desmistificar, bem pelo contrário, pois seu ideal é desenhar uma nova mítica a partir do processo. Menos importante do que descortinar mecanicamente preparativos a uma tomada complexa, por exemplo, é a observação parcimoniosa dos esforços humanos para que materiais, texturas e movimentos adquiram sentido cinematográfico, sendo este uma expressão poética do audiovisual. No centro dessa verdadeira miríade de intenções está o Sensei Kurosawa, sempre esquadrinhado como um daqueles mestres orientais tão sábios quanto proativos. Trata-se de uma belíssima carta de amor.

O lirismo está no método, em como a artesania deixa de ser uma questão de ordem técnica e adquire contornos de enlevo ao desdobrar-se num fluxo criativo. Em A.K. Marker examina o cinema em compasso de construção como uma batalha na qual cada “soldado” desempenha funções vitais e os detalhes, até os aparentemente ínfimos, são imprescindíveis. Nessa direção, Kurosawa é apresentado como um general, alguém que não desperdiça palavras, dono do bom humor característico de quem “pinta” num ambiente apaixonante e desafiador ao mesmo tempo. Ao costurar as intrigas palacianas típicas de William Shakespeare, dando-lhes as tintas do jidaigeki, o japonês gerou um clássico moderno, para isso, paradoxalmente, colocando os dois pés no passado. E o francês está atento às eventuais rimas entre esse trabalho específico, capturado em meio a uma natureza frequentemente hostil, e toda a carreira de um dos realizadores mais influentes do cinema.

Fazendo menção a Os Sete Samurais (1954), ou seja, novamente recorrendo a um paralelo entre as filmagens de Ran e pontos da trajetória de Kurosawa, Chris Marker lança luz sobre sete colaboradores antigos do Sensei. Ele perscruta esse grupo, sublinhando a lealdade como traço essencial ao êxito das parcerias. Então, incorre mais uma vez na associação do ato de filmar com a guerra. A.K. expõe uma mitologia em meio ao processo prático feito de repetições e contratempos, tais como a névoa que obriga a paralisação. Empenhos hercúleos, como o tingimento dourado de uma relva e a criação de uma lua artificial, capazes de tomar um dia inteiro de boa parte da equipe, acabam gerando momentos lindos, mas nem sempre aproveitados. “Esta cena foi cortada da montagem final”, diz o narrador com um tom levemente melancólico, numa passagem que rima com aquela em que o próprio Kurosawa lamenta não registrar certas imagens de backstage tão ou mais belas.

A.K. homenageia Akira Kurosawa ao quebrar premonitoriamente o formalismo de boa parte dos documentários de bastidor adiante popularizados. Iluminando componentes vitais – a chuva, os cavalos e a névoa –, relacionando-os com constantes estilísticas e temáticas do mestre nipônico, Chris Marker extrai poesia daquilo que, portanto, se recusa a ser estritamente elucidativo ou simples anexo. Atribuindo o peso devido à locação de Ran, o imponente Monte Fuji, que confere uma paisagem quase lunar aos dilemas dessa projeção oriental do Rei Lear shakespeariano, o cineasta francês se aproxima do ídolo por dar à natureza um papel fundamental. Ao se deter minuciosamente em gestos simples, vide o amarrar das armaduras samurais e o cuidado com que todos executam suas atividades na produção, ele celebra efusiva e sensivelmente as nuances. Amalgamadas, elas permitem a existência desses milagres projetados a 24 quadros por segundo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
8
Bianca Zasso
9
MÉDIA
8.5

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